Ciencias Sociales Brasil Campinas, São Paulo, Martes, 11 de mayo de 2010 a las 13:00
50 anos de Brasília

A Brasília utópica e seu lado B

Distrito Federal, que gira em torno da capital do país, é uma síntese nacional: uma região com muitas riquezas, mas profundamente desigual

Márcio Derbli/ComCiência/Labjor/SP/DICYT - Uma cidade inventada para ser o marco de uma nova era de um país. Brasília era a síntese da proposta modernista de desenvolvimento que Juscelino Kubitschek desenhava para o Brasil há cinquenta anos. Hoje o Distrito Federal, que gira em torno da capital do país, é uma síntese nacional: uma região com muitas riquezas, mas profundamente desigual.

 

O estabelecimento da capital federal no interior do país, que já constava de um dispositivo na Constituição de 1891, foi o mote para a aventura da construção do novo Brasil, mesclando a modernidade do capitalismo com o monumentalismo da cidade, expresso em suas largas avenidas. A capital foi projetada para coordenar a expansão econômica e social que fatalmente, acreditava-se, o país atingiria. “O problema da utopia da modernidade é que sempre há o não moderno, que se transforma, mas continua o mesmo conduzindo o processo.”, afirma Marília Luíza Peluso, professora do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília (UnB).

 

Segundo artigo de Peluso, para representar a emergência de um país em desenvolvimento, a capital federal foi forjada com base num urbanismo modernista que, segundo a autora, era utópico, pois buscava descontextualizar a cidade de seu ambiente. Entretanto, era justamente essa descontextualização que representaria a imagem de um grande país que buscava um novo futuro, enterrando nosso passado colonial. Ainda segundo o artigo, os padrões do urbanismo modernista restringiam os desejos e as diferenças dos habitantes das cidades. No caso de Brasília, a cidade foi concebida com tudo que seria necessário para o bem-estar dos moradores e sua função de capital federal, afastando as mazelas dos grandes centros. “(Lúcio) Costa projetou uma cidade muito singela, mas complexa em sua concepção. O plano detalhava o núcleo urbano em termos de locais de trabalho e habitação, comércio, lazer e circulação com uma simplicidade que permitiu sua implantação em três anos e 10 meses”, ressalta Peluso.

 

Brasília, atualmente, é a segunda cidade com a maior renda per capita do país (R$ 40.696, segundo o IBGE) e a primeira segundo o levantamento feito pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que usa o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Entretanto, segundo documento do próprio organismo internacional, a classificação pode ser enganosa, pois a ONU considera “Brasília” como todo o Distrito Federal, sem considerar as diferenças entre o Plano Piloto (e as regiões administrativas mais próximas, como o Lago Sul, Lago Norte, Sudoeste/Octogonal e Park Way, de maior poder aquisitivo) e as cidades-satélites em seu entorno. Ainda segundo o documento, datado de 2003, se fosse considerada como uma região metropolitana, Brasília ficaria em 11º entre as regiões metropolitanas brasileiras com maior IDH. Por outro lado, em um levantamento da Companhia de Planejamento do DF (Codeplan) realizado em 2000, utilizando a metodologia do IDH, mas aplicando em cada região administrativa separadamente, o Lago Sul registrava o melhor IDH do mundo, superando a Noruega, país com melhor IDH na ocasião.

 

Apesar disso, Peluso não pensa Brasília como uma “ilha da fantasia”. A cidade, segundo ela, é chamada assim com a conotação de não levar em consideração os desejos e aspirações do país, mas a pesquisadora entende a capital como uma síntese do Brasil porque, como cidade nova, acabou atraindo pessoas de todos os estados, que levaram seus hábitos, costumes e também suas contradições e conflitos enraizados secularmente nesses mesmos hábitos e costumes.

 

A pesquisadora acredita que, apesar de ser uma cidade planejada, não há mudança no caráter contraditório das relações sociais, pois no território onde foi construída, as práticas que se instauraram em seguida à inauguração reproduzem as mesmas relações seculares. “Brasília é singular em suas formas do Plano Piloto, mas tão antiga quanto o Brasil em suas periferias e invasões”, resume.

 

Construída em ritmo acelerado, Brasília demandou um imenso contingente de trabalhadores que, após a inauguração, se estabeleceram na região. Para acomodar a população, os administradores lançaram mão, ano após ano, da construção de cidades-satélites. Segundo Peluso, o inglês Sir William Holford, membro do júri que escolheu o plano piloto de Brasília, propôs as cidades-satélites como forma do crescimento da capital, supondo que ela excederia os 500 mil habitantes para os quais foi projetada. A ideia de cidades-satélites e cidades-jardins data dos fins do século XIX e princípios do século XX, como forma de crescimento das cidades com qualidade de vida.

 

As cidades-satélites

 

Atualmente, o DF é constituído por 30 regiões administrativas (RA), englobando o Plano Piloto e as cidades-satélites. Todas são politicamente dependentes e administradas pelo Governo do Distrito Federal (GDF).

 

Taguatinga, a primeira cidade do DF, foi inaugurada antes da capital, em 1958. Essa satélite é resultado da transferência de uma invasão denominada Vila Sarah Kubitschek, formada por migrantes impedidos pela então Guarda Especial de Brasília, responsável pela manutenção da ordem pública durante a construção da capital, a chegar à região. Em dez dias, cinco mil pessoas foram levadas do local da invasão para a nova cidade.

 

Gama nasceu na época da inauguração de Brasília. O nome é herdado de uma fazenda que existia na região. A cidade recebeu 30 famílias que foram retiradas do local onde hoje é o lago Paranoá. Mais tarde, o território daquela região administrativa foi desmembrado em três: o próprio Gama, o Núcleo Urbano de Santa Maria (1989) e o Recanto das Emas (1993).

 

Há também locais que já eram habitados muito antes da concepção de Brasília e que foram incorporados ao quadrilátero DF logo após a sua criação. A data oficial da fundação de Planaltina é 1859, mas historiadores acreditam ser ainda mais antiga, do final do século XVIII. Fruto da exploração de ouro e pedras preciosas e da passagem dos bandeirantes pela região, Planaltina era conhecida anteriormente como Mestre D´armas. Em 1892, a comissão Cruls, responsável pela demarcação do território onde seria instalada a capital federal, se instalou no povoado. Anos depois, em 1955, com a delimitação definitiva dos limites do DF, parte da cidade foi incorporada ao território da capital, enquanto a parte restante passou a se chamar Planaltina de Goiás.

 

O Núcleo Bandeirante, ou a Cidade Livre, como era conhecida durante a construção de Brasília, foi erguido pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) – criada por JK para aquele mega empreendimento de engenharia – para ser uma cidade comercial e de serviços, fornecendo uma mínima infraestrutura para a região. De caráter provisório, o Núcleo foi planejado para deixar de existir após a inauguração da capital. Os moradores, entretanto, se organizaram e criaram um movimento de resistência para permanecer no local. O presidente João Goulart, em 1961, criou a cidade, que permaneceu ainda muitos anos com pouca infraestrutura.

 

Ceilândia talvez seja a cidade-satélite mais emblemática no processo que culminou na desigualdade encontrada na região. Em 1969, o DF contava com cerca de 15% da população da época vivendo em favelas. Uma entidade criada para resolver o problema, a Comissão de Erradicação de Invasões (CEI), delimitou uma área para transferir os moradores de nove invasões. Em março de 1971, iniciou-se a transferência das famílias e, nove meses depois, ela foi concluída. O nome da cidade derivou da comissão que a inaugurou. Em 1999, Ceilândia respondia por 18% de toda população do DF.

 

A partir dos anos 1980, Brasília ganhou mais nove cidades-satélites, criadas pelo então governador do DF, Joaquim Roriz. As cidades foram legalizações de assentamentos e invasões, com uma população oriunda principalmente do Nordeste e de cidades de Goiás. Atualmente, cerca de 90% da população do DF mora nas cidades-satélites. A partir da redemocratização, o problema habitacional se incorporou ao discurso dos políticos. “Tenho dúvidas que fosse no sentido de resolvê-lo ou de obter votos simplesmente. Creio que as soluções propostas aliviaram um tanto o problema habitacional. Como foram feitas muito rapidamente e pouco planejadas, trouxeram prejuízo para todo o Distrito Federal”, afirma Peluso. Outro problema, que segundo ela, não é exclusividade do DF, é a grilagem de terras. A prática modificou o desenho do quadrilátero e, onde era pra existir núcleos afastados e separados por áreas preservadas, a ocupação foi contínua, sem nenhum cuidado com o meio ambiente. “Os problemas ambientais que encontramos agora só tendem a se tornar muito mais graves no futuro”, alerta a pesquisadora.

 

As diferenças

 

Segundo um levantamento realizado pela ONU (que considera todo o DF), Brasília é uma das vinte cidades do mundo com maior índice de desigualdade social, segundo o coeficiente de Gini, usado para calcular a desigualdade de distribuição de renda. A pontuação atingida pela capital (0,6) é semelhante ao índice nacional (0,58), o que reforça a visão da cidade como um espelho do país. Quanto mais próximo a um é o índice, maior a desigualdade.

 

As disparidades que o brasiliense, ou o candango, encontra entre o Plano Piloto e as cidades-satélites são grandes, tanto em termos de infraestrutura como sociais. Segundo Sérgio Cássio de Souza, fundador da ONG Grupo Atitude, que realiza trabalhos de cunho social com jovens de Ceilândia, não há na cidade-satélite recursos suficientes para realização de eventos culturais e a administração do Distrito Federal investe pouco na região administrativa. As opções de emprego na cidade são restritas. “O jovem da Ceilândia tem empregos pontuais. Não temos muitas oportunidades de trabalho com carteira assinada. Na maior parte das vezes, trabalhamos em Taguatinga, que tem um comércio mais desenvolvido, e em Brasília, que tem mais opções de trabalho, porque tem os ministérios e muitas vagas em órgãos públicos”, afirma Souza.

 

Hernandez Moura Silva, doutorando na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e ex-morador do Plano Piloto, conta que também trabalhou em um órgão público, o Ministério do Meio Ambiente, durante a faculdade. Silva morou em Brasília entre a adolescência e o final da graduação. Vindo de Sergipe, ele ajuda a representar como se forma a diversidade da população brasiliense.

 

Falando sobre as opções culturais ou de lazer do Plano Piloto, Silva observa que os adolescentes brasilienses se queixam da falta de acesso a elas. Como Brasília tem um território muito extenso e as distâncias são grandes, é preciso usar carro para chegar aos pontos culturais ou de lazer. Segundo ele, o transporte público é deficiente e não atende às necessidades. Talvez, por essa ociosidade, comenta Silva, existam tantas gangues de jovens em Brasília que cometem delitos como vandalismo, por exemplo.

 

Em Ceilândia, o problema não é o acesso, mas a falta de opções. “Não temos muitas opções de lazer na cidade. De um modo geral, o jovem se reúne em grupos, mas não se diverte”, conta Souza. Frequentar os bares brasilienses, porém, não parece uma solução. Souza conta que ele e alguns amigos foram advertidos pela polícia, que abordou o ônibus em que estavam, em direção à Brasília, a não irem à capital à noite, pois jovens de Ceilândia só iriam para o Plano Piloto naquele horário para cometer delitos.

 

O lado B de Brasília

 

Brasília foi um celeiro de bandas de rock nos anos 1980. Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Capital Inicial, Plebe Rude, foram formadas por jovens da capital federal influenciados pelo punk rock que fazia sucesso nos Estados Unidos. Por concentrar o staff da diplomacia brasileira (e suas famílias), os jovens tinham acesso facilitado à produção musical do exterior.

 

E quando o assunto é identidade cultural, a distância entre Ceilândia e o Plano, de 25 km, parece ainda maior. “O rock que foi produzido em Brasília nos anos 1980 não chegou às cidades-satélites, por exemplo. Não tivemos nossos representantes. Foi só a burguesia que tocou suas guitarras e cantou suas músicas. Não nos confraternizamos”, enfatiza Souza.

 

Silva, por outro lado, acha que o rock está enraizado na cidade. “Os adolescentes se envolvem. Muita gente tem vontade de montar uma banda de rock, inspirados na Legião, Plebe Rude”, comenta. “Mas tem outras opções também, Brasília é eclética”, ressalta. Silva se refere a lugares como o Clube do Choro, bastante badalado na capital, os diversos barzinhos, onde foram lançadas artistas como Cássia Eller e Zélia Duncan, opções como o Teatro Nacional, o Teatro da Caixa e o Teatro dos Bancários, além do circuito alternativo de cinema no cine Brasília – que abriga um festival nacional de cinema –, na Cultura Inglesa e na Academia de Tênis.

 

A distância também aparece na identidade do candango. Silva acredita que o brasiliense já incorporou o candango como gentílico e há certo orgulho em adjetivar a cultura como candanga. Souza discorda e prefere se chamar “ceilandense”. “Brasília ainda é outro lugar, com valores diferentes e histórias bem diferentes das nossas. Aqui temos, na maioria, nordestinos que vieram para construir a cidade”, comenta Souza.

 

Brasília é multifacetada, mestiça e paradoxal, assim como o Brasil. Também como a nação, ainda é uma jovem senhora. À capital restam muitas questões para resolver com suas cidades mais próximas e com o resto do país. Os próximos cinquenta anos dirão se ela conseguirá avançar onde precisa (ou se os avanços serão para todos).