Cultura Brasil Campinas, São Paulo, Lunes, 28 de mayo de 2012 a las 13:25
Escravos do século XXI

Atlas mostra fluxo de trabalhadores escravos no Brasil

Trata-se de uma importante fonte de dados para o país que acaba de aprovar uma Emenda Constitucional que determina a expropriação de propriedades onde for encontrada essa situação

Maria Teresa Manfredo/ComCiência/Labjor/DICYT - Pela primeira vez temos caracterizado o perfil do trabalhador escravo brasileiro do século XXI: é um migrante, do sexo masculino e analfabeto funcional. Originários em sua maioria do Maranhão, norte do Tocantins ou oeste do Piauí, esses trabalhadores são levados para as fronteiras da Amazônia, em municípios recém-criados, onde são utilizados em atividades ligadas ao desmatamento. É o que relata o Atlas do Trabalho Escravo no Brasil, importante fonte de dados para este tema tão atual (na última terça-feira, 22, a Câmara dos Deputados aprovou uma Proposta de Emenda Constitucional que determina a expropriação de propriedades rurais e urbanas onde foram encontradas situações de trabalho escravo).

 

O volume está disponível em versão digital no endereço http://migre.me/9bewu. Foi lançado pela Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip). Escrito pelos geógrafos Eduardo Paulon Girardi (Unesp Presidente Prudente), Hervé Théry (Universidade de São Paulo - USP), Neli Aparecida de Mello (USP) e Julio Hato (USP), o livro utiliza fontes oficiais do Ministério do Trabalho e da Comissão Pastoral da Terra.

 

Submetidos a condições degradantes de serviço e impedidos de romper a relação com o empregador, eles permanecem presos até que terminem a tarefa para a qual foram aliciados, sob ameaças que vão de torturas psicológicas a espancamentos e assassinatos. É a escravidão contemporânea. Detalhando as ocorrências desse tipo de trabalho por setores da economia e em todo o território nacional, o atlas aponta que atividades relacionadas com carvão ou pecuária, na Amazônia, estão entre os exemplos de risco muito alto de existência de trabalho escravo.

 

O material caracteriza a distribuição, os fluxos, as modalidades e utilizações do trabalho escravo no país no nível municipal, estadual e regional e, de forma inédita, traz o Índice de Probabilidade de Trabalho Escravo e o Índice de Vulnerabilidade ao Aliciamento. Esses seriam instrumentos inovadores para gestores de políticas públicas, pois podem contribuir para o planejamento no combate a essa prática ainda adotada no Brasil. Além disso, com esses dados, financiadores e empresas podem ter em mãos uma ferramenta para evitar negócios com empresários ligados a essa prática criminosa.

 

Escravidão globalizada

 

A natureza econômica da escravidão contemporânea difere da escravidão da Antiguidade clássica e da escravidão moderna, mas o tratamento desumano, a restrição à liberdade e o processo de “coisificação” são similares. É o que alerta Leonardo Sakamoto, doutor em Ciência Política pela USP e membro da Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, no artigo “Perversos contratos de trabalho” publicado em Le Monde Diplomatique Brasil, maio 2009.

 

Segundo Sakamoto, a produção capitalista necessita de espaços não capitalistas para se desenvolver. Assim, não admite limitações na aquisição de matéria-prima e na criação de mercados. Ao longo de séculos, países e corporações têm ido à guerra por esse motivo. Em um curto espaço de tempo, de acordo com uma sinalização de demanda pelos centros capitalistas nacionais e globais, os empreendimentos agropecuários são capazes de se expandir sobre áreas, na maioria das vezes, ocupadas por populações que vivem sob um modo de produção não capitalista. Dessa forma, em questão de anos, surgem grandes fazendas de gado, lavouras de soja, algodão e cana-de-açucar, carvoarias, produzindo matéria-prima e gêneros alimentícios, onde viviam populações indígenas, camponeses, comunidades quilombolas ou ribeirinhas.

 

Nessa expansão, coexistem tecnologia de ponta, vendida e financiada pelos mesmos centros capitalistas nacionais e globais, e formas ilegais de trabalho. O que parece contraditório na verdade expressa um processo fundamental para o desenvolvimento desses empreendimentos, acelerando sua capitalização e garantindo a capacidade de concorrência.

 

A utilização de trabalho escravo contemporâneo não é resquício de modos de produção arcaicos que sobreviveram provisoriamente à introdução do capitalismo, mas sim um instrumento utilizado pelo próprio capital para facilitar a acumulação em seu processo de expansão.

 

A superexploração do trabalho, dentre elas, a escravidão, é deliberadamente utilizada em determinadas regiões e circunstâncias como parte integrante e instrumento do capital. Sem ela, empreendimentos mais atrasados em áreas de expansão não teriam a mesma capacidade de concorrer na economia globalizada, defende Sakamoto.

 

Detalhes da Emenda Constitucional

 

Foram 360 votos a favor, 29 contra e 25 abstenções. O acordo que permitiu a votação, porém, fará com que a proposta siga para o Senado e tenha de voltar para a Câmara antes de se transformar numa norma legal.

 

A proposta foi aprovada em primeiro turno pela Câmara em agosto de 2004, com forte oposição da bancada ruralista. Tais deputados se manifestaram contra o propósito, alegando temerem abusos na implementação. O principal argumento é que é frágil o procedimento enquadramento da propriedade como local de trabalho escravo, pois este seria feito por apenas um fiscal.

 

Por isso, a proposta de emenda constitucional seguirá para o Senado com o compromisso de se fazer uma alteração vinculando a aplicação da regra a uma regulamentação posterior. Com essa mudança, será necessário novo trâmite na Câmara.