Ciencia Brasil Campinas, São Paulo, Jueves, 19 de mayo de 2011 a las 18:04
Economia

Embora necessária, reforma tributária ainda está distante do consenso

Ainda que a necessidade de uma revisão geral no sistema tributário brasileiro seja reconhecida por praticamente todos os segmentos da sociedade, a tramitação no Congresso Nacional e as discussões sobre elas, não permitem um consenso para sua aprova

ComCiência/Labjor/Cristiane Paião/DICYT Entra governo, sai governo, e a questão da reforma tributária no Brasil permanece interminável. Os debates são intensos, o processo longo, e os resultados, nem sempre efetivos. Ainda que a necessidade de uma revisão geral no sistema tributário brasileiro seja reconhecida por praticamente todos os segmentos da sociedade, a tramitação no Congresso Nacional e as discussões sobre elas, no entanto, não permitem vislumbrar no horizonte um consenso para sua aprovação.

 

Isso porque as questões que envolvem o debate são complexas. Diversos interesses estão em jogo e, muitas vezes, são radicalmente opostos. Entre eles, a eterna vontade de cidadãos e empresas de pagar o mínimo possível de impostos e de ver o retorno disso em serviços públicos de qualidade e, ao mesmo tempo, a também eterna necessidade do Estado de arrecadar impostos para manter a máquina pública funcionando. Além disso, há a disputa em relação à carga tributária que cada um dos setores da sociedade deverá pagar e a disputa entre as diferentes esferas de governo que, independentemente de serem administradas por partidos afins ou ideologicamente adversários, não querem perder a sua fatia na arrecadação.

 

“Toda a renda arrecadada por meio dos impostos será dividida entre as esferas federal, estadual e municipal, e qualquer mudança no sistema de tributação afeta a União, os estados e os municípios, e é por isso que existem tantos interesses em jogo. Somados aos embates entre cidadão e Estado – um querendo pagar menos, o outro, querendo arrecadar mais –, e a disputa pela verba entre a União, os governos estaduais e os governos municipais, você tem ainda os embates trazidos pelos setores bancário, industrial, de serviços e de mineração, por exemplo, que travam uma grande disputa em relação à diminuição da carga tributária para seus produtos e serviços. São vários os embates envolvidos”, explica Francisco Lopreato, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

 

“Sem alterações profundas no gasto público, que levem à sua redução, o debate sobre reforma tributária será sempre muito difícil, tendendo a modificações muito marginais. A menos que o Brasil ingressasse numa fase de crescimento econômico muito acelerado por um longo período (mais de 5% ao ano), o que, naturalmente, tornaria todo o debate mais fácil, porque a receita cresceria naturalmente, sendo mais facilmente aceitável uma carga tributária menor (em relação ao PIB). Nesse caso, abrir-se-iam espaços para reformas mais profundas do sistema tributário nacional”, observa Edilberto Pontes Lima, Conselheiro do Tribunal de Contas do Ceará e professor convidado da Universidade Federal do Ceará (UFCE) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Distrito Federal.

 

“Como as despesas são dadas, rígidas, e as demandas por gastos públicos são sempre crescentes, é difícil apostar em reformas que possam reduzir a arrecadação. Além disso, um novo sistema tributário pode até ser melhor que o vigente no médio e longo prazos, mas a transição entre um sistema e outro pode ser dolorosa. Por isso, por um lado, o próprio governo federal, autor da proposta inicial, não se empenha devidamente para aprovar e, por outro, estados e municípios se mobilizam fortemente para aumentar sua participação no bolo, resultando sempre no impasse. É como se cada participante exercesse o poder de veto e, embora não consiga impor a sua preferência, consegue evitar que o sistema se altere”, explica Lima.

 

O imposto e o conceito de Estado Democrático


Mas ainda que ninguém goste de pagar impostos para os governos, não pagar é um desejo irrealizável. “Não dá para você viver numa sociedade organizada sem pagar imposto. A ideia de sociedade organizada implica em você ter um Estado e, tendo o Estado, ele precisa de dinheiro para se manter. É preciso pagar, por exemplo, exército, polícia, serviços de saúde, de educação. E isso só pode ser mantido com a renda do cidadão”, explica Adalton Diniz, professor da Faculdade Cásper Líbero e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “É por isso que imposto tem esse nome, ele é imposto. Ele não é voluntário”, evidencia.

 

Segundo Diniz, o debate é longo porque também vai se adaptando às mudanças das estruturas políticas e econômicas ao longo do tempo. “Eu diria que, na verdade, a estrutura tributária estará sempre em pauta. Talvez não seja possível fazer uma reforma ampla porque são muitos os interesses envolvidos. E é por essa razão que é necessário mudar o foco do debate. Ao invés de se falar numa reforma tributária geral, é preciso pensar em reformas pontuais, porque, no fundo, a reforma deverá ser permanentemente discutida e reavaliada”, ressalta.

 

Na medida em que um país vai se desenvolvendo, a população aumenta e o Estado se burocratiza ainda mais, fazendo com que, cada vez mais, novos recursos sejam necessários para dar conta dessa nova complexidade. E todo esse processo de modernização implica em uma mudança da estrutura tributária, tendo em vista que, naturalmente, alguns impostos deixam de ser produtivos e, ao mesmo tempo, outros precisam criados.

 

Ao longo da história da humanidade, diferentes embates se deram em torno desse tema e importantes guerras e revoluções foram declaradas em seu nome. A Guerra de Canudos, por exemplo, na qual se destacou a figura de Antônio Conselheiro, foi uma delas. Não concordando com o fato dos habitantes de Canudos, liderados por ele, não pagarem impostos e viverem sem seguir as leis estabelecidas, contestando a monarquia e a situação de injustiça social que reinava na região, o governo da Bahia, apoiado pela corte, declarou guerra aos habitantes e dizimou a população local. A nível mundial, a Revolução Gloriosa, ocorrida na Inglaterra em 1688, foi a mais importante e resultou na criação do conceito de Estado Democrático.

 

De acordo com Diniz, “é porque o cidadão paga o imposto que ele tem o direito de participar da administração do Estado, de cobrar, exigir; é porque eu estou dando o meu dinheiro para o governo que eu tenho o direito de saber onde ele está sendo aplicado, e é por isso também que eu tenho o direito de eleger representantes que vão decidir quanto de imposto o Estado vai cobrar, quanto e onde ele vai colocar esse dinheiro. É assim que nasce o Estado Democrático: da reivindicação dos cidadãos de controlar a ação do Estado em cobrar impostos e de decidir para onde vai esse dinheiro. É com esse intuito que a Revolução Gloriosa da Inglaterra criou o Parlamento”, explica.

 

Após essa revolução, o governo inglês não poderia mais criar impostos sem colocar uma proposta em votação no Parlamento, justificando por que estava precisando de mais dinheiro. Era o Parlamento, na essência, quem iria decidir se, de fato, aquela necessidade deveria ser atendida com impostos ou não. Além disso, o governo passou a prestar contas, todos os anos, de como estava utilizando o dinheiro arrecadado.

 

Segundo Diniz, o imposto é, em certo sentido, um mal necessário, pois formas alternativas de o Estado arrecadar dinheiro poderiam ser, na verdade, um veneno para democracia. “Antes de ter o Parlamento, de ter essa obrigatoriedade de ouvir a população e de dar satisfações, o Estado inglês poderia fazer o que bem quisesse com os impostos. Ele podia, por exemplo, declarar guerra a um país sem prestar contas a ninguém, porque ele tinha renda própria – parte da renda dos governos, de fato, provinha de negócios privados do rei, então ele não precisava prestar contas para ninguém. É, mais ou menos, como funcionam os países árabes, onde a renda do Estado vem das propriedades e da exploração das jazidas de petróleo. Como a renda não vem de impostos, eles não precisam prestar contas para a população”, sinaliza.

 

As reformas no Brasil


A estrutura de arrecadação dos impostos no Brasil passou por diversas alterações ao longo dos séculos, mas, quase sempre, elas não passavam de meros remendos em uma estrutura já existente. A situação só se alterou após o golpe militar, quando, em 1967, o governo decidiu que era hora de alterar radicalmente a regras que regiam a arrecadação e a distribuição dos impostos.

 

Até então, a estrutura tributária do Brasil, já antiquada e muito remendada, ainda guardava resquícios da economia predominantemente agrícola dos séculos anteriores. Desde a década de 1950, no entanto, percebia-se que era preciso que ela fosse alterada. Mas, como em toda reforma tributária, a discussão gerou muita polêmica e nada aconteceu nos governos civis.

 

Lima explica que a reforma de 1967 foi uma das que, de fato, modernizou o sistema tributário brasileiro de forma radical, eliminando diversos impostos e criando novos, melhorando, assim, o perfil da arrecadação. “Introduziu-se, nesse período, o ICM, imposto sobre valor adicionado, na época só existente na França, eliminando-se boa parte dos tributos cumulativos. Houve um substancial aumento da carga tributária, em decorrência, principalmente, de a máquina arrecadadora ter adquirido maior organização. Um marco do período é a instituição do Código Tributário Nacional. Além disso, também é digna de nota a centralização da legislação tributária, restando pouca margem para Estados legislarem sobre tributos, notadamente sobre o ICM, tributo pelo qual ficaram responsáveis por arrecadar”, enumera.

 

Segundo Diniz, uma reforma tributária tão ampla como essa só pôde ser feita precisamente porque estávamos em um período de fraca democracia. “Uma reforma tão ordenada, amarrada, só pode acontecer numa ditadura ou numa situação em que a crise seja tão grave que todos percebam que é preciso alterar radicalmente essa situação para que todos, de alguma forma, possam ganhar. E ainda assim vai ter polêmica, porque cada um vai defender os seus interesses. O cidadão e o empresário querem pagar menos imposto, os governos, ao mesmo tempo, querem mais dinheiro. Como você concilia todos esses interesses? Impossível”, opina.

 

A reforma de 1967, na verdade, resultou na estrutura sobre a qual ainda estamos vivendo, pois dela decorrem diversos problemas tributários da atualidade. Com o fim da ditadura, veio a abertura democrática e, com ela, a elaboração da Constituição promulgada em 1988, que alterou as responsabilidades das instâncias do Estado sem, no entanto, redistribuir a renda advinda dos impostos. Algumas atribuições que antes eram da alçada da União passaram a ser responsabilidade dos governos estaduais; outras que eram da alçada dos estados passaram a ser responsabilidade dos governos municipais. Ainda que algumas medidas tivessem sido tomadas no sentido da redistribuição tributária, no fundo, essas alterações não passaram de meros remendos na estrutura já existente.

 

“A Constituição de 1988 trouxe o espírito descentralizador. Aumentou a base de arrecadação dos tributos estaduais, principalmente do ICM, que se tornou ICMS, e aumentou os percentuais nos fundos de participação estaduais e municipais. Por muito tempo, ela foi acusada de descentralizar as receitas, mas não descentralizar os encargos. Isso fez com que a União fosse obrigada a criar uma série de tributos novos ou ampliar alíquotas de tributos existentes. É o caso da Cofins, da CPMF (inicialmente, IPMF), da CSLL, tributos com objetivo precípuo de arrecadar, sem maiores preocupações com qualidade (não-cumulatividade, progressividade, neutralidade etc). Posteriormente, o que houve foram ajustes pontuais. Redução da cumulatividade, principalmente nos produtos destinados à exportação, fim da CPMF, entre outras. A última modificação constitucional foi a emenda nº 42/2003, no início do governo Lula. Apesar do ímpeto inicial, o que foi aprovado não constituiu propriamente uma reforma tributária, apenas mudanças pontuais. Talvez a principal tenha sido sobre a tributação de microempresas, que permitiu o regime simplificado para as empresas desse porte, o que ficou conhecido como Super Simples”, aponta Lima.

 

Uma das consequências trazidas pela reforma de 1988 foi a questão das guerras fiscais realizadas hoje entre os governos estaduais e, em menor grau, entre os municípios, para atrair empresas para seus domínios. O Imposto sobre Circulação de Mercadorias, que depois virou o ICMS, foi criado em 1967 pelo governo federal para ser arrecadado, desde o início, pelos governos estaduais com uma alíquota fixa. Com a Constituição de 1988 e a reabertura democrática, os estados recuperaram a autonomia tributária e puderam então alterar essa alíquota, manipulando os seus impostos para tentar atrair empresas instaladas em outros lugares.

 

“O grande problema trazido pela guerra fiscal é em relação ao desenvolvimento regional”, explica Lopreato. “Durante o regime militar, tudo era centralizado pelo governo federal, mas depois da reabertura, o governo deixou de ter uma política centralizada de desenvolvimento regional e aí cada estado ou município tentou fazer isso por si só, distribuindo benefícios fiscais para atrair as empresas para seus domínios. Isso trouxe benefícios e malefícios. Em termos de estados e municípios, não há um consenso. Há casos que foram bastante lucrativos e outros que, ao contrário, deram prejuízo. E em termos de país, de desenvolvimento nacional, acabou sendo prejudicial, porque diversas empresas internacionais vieram para cá e se beneficiaram com baixíssimas alíquotas, e às vezes até isenção fiscal por longos períodos, sem que houvesse nenhuma necessidade, pois se essas empresas vieram para cá, é porque haviam escolhido realizar os seus investimentos aqui e não em outro lugar”, aponta.

 

Para Lima, a discussão sobre a cobrança do ICMS na origem ou no destino envolve basicamente os mesmos problemas da reforma tributária como um todo. “Ninguém quer perder arrecadação, porque a demanda por gastos é enorme e os recursos disponíveis são sempre insuficientes. As compensações propostas por eventuais perdas não dão a devida segurança sobre a neutralidade em relação às receitas disponíveis. Na prática, o que há, no Brasil, é um sistema híbrido, parte da cobrança na origem, parte no destino, o que dá margem a fraudes, passeios de notas fiscais e distorções de diversas naturezas. Um sistema puro (destino ou mesmo origem) reduziria drasticamente a margem para fraudes. Estados produtores argumentam em prol da origem, enquanto Estados consumidores defendem a tributação no destino. O resultado é o impasse. A força dos governadores é grande, pois influenciam suas bancadas no Congresso Nacional e têm interesse direto no tema, pois o ICMS é o principal tributo individual do país”, explica.

 

Diversas propostas vêm sendo apresentadas nas últimas décadas no Congresso Nacional por diferentes partidos. Em comum, está a necessidade de fomentar o desenvolvimento do país, eliminando obstáculos para uma produção mais eficiente e menos custosa, simplificando e desburocratizando o sistema tributário. Para isso, é fundamental eliminar as distorções da estrutura tributária, diminuindo o custo dos investimentos e das exportações, por um lado, e ampliar a competitividade do país e reduzindo a carga fiscal que incide sobre produtores e consumidores, estimulando, assim, um desenvolvimento mais equilibrado entre estados e municípios. Além disso, busca-se ainda o aumento da formalidade, na tentativa de que a carga tributária seja distribuída equitativamente, e a eliminação da guerra fiscal, que poderia resultar em aumento dos investimentos e da eficiência econômica e no aperfeiçoamento da política de desenvolvimento regional, introduzindo mecanismos mais eficientes de desenvolvimento nas regiões mais pobres.

 

Muitos especialistas apontam que, antes da reforma tributária, é preciso acontecer a reforma dos gastos públicos. “Enquanto o gasto público brasileiro estiver no patamar em que se encontra (acima de 35% do PIB), reformar o sistema tributário é uma utopia. O problema é que na agenda política brasileira, não há movimentos relevantes para reduções substanciais do gasto público. Pelo contrário, os movimentos mais importantes são de expansão. Nesse sentido, pouco se fala da reforma da previdência, um problema muito grave, em face do rápido envelhecimento da população. Pressiona-se pela ampliação dos gastos sociais (expansão do bolsa-família, por exemplo) e dos investimentos públicos que, faz muito tempo, estão em patamares bastante reduzidos. Os espaços, portanto, para reformas tributárias profundas acabam sendo muito estreitos”, sinaliza Lima.

 

A presidente Dilma Roussef divulgou, recentemente, que o governo federal está elaborando uma nova proposta sem, no entanto, revelar detalhes. Segundo Lopreato, ainda não se sabe exatamente qual o caminho que a presidente vai seguir, se retomará a proposta do governo Lula ou se vai trazer novidades. “O fato é que o início de um governo é sempre um bom momento para se discutir essa questão. A discussão sobre a inflação, contudo, está atrapalhando agora e pode prejudicar essa negociação”, avalia.