Cultura Brasil Campinas, São Paulo, Martes, 10 de mayo de 2011 a las 13:38
Arte Cultura

Margarita Becedas

A guardiã dos tesouros da Biblioteca Antiga de Salamanca fala sobre os acervos da instituição, destaca obras importantes e conta sobre a conservação e acesso a esse material.

ComCiência/Labjor/Simone Pallone/DICYT Formada em filosofia hispânica pela Universidade de Salamanca, Margarita Becedas começou a atuar como bibliotecária em 1986, quando entrou para o quadro de bibliotecários do Estado. Atualmente é responsável pelos Sistemas Bibliotecários das Universidades de Valladolid e Salamanca, e desde 1997, é diretora da Biblioteca de História Geral da Universidade de Salamanca (Usal). Ela é autora dos livros Tesoros de la antigua librería de la Universidad de Salamanca (2002), e Las bibliotecas históricas de Castilla y León (2007). Em 2008, publicou com dois colegas de profissão um manual de catalogação de acervos antigos intitulado Los libros impresos antiguos: análisis y aplicacion de La ISBD(A). Becedas é também autora de uma dezena de artigos em revistas e de monografias coletivas, a maior parte sobre patrimônio histórico, bibliotecas históricas ou publicações impressas. Dentre esses, destaca-se o artigo dedicado à história da Biblioteca Central, escrito em colaboração com Oscar Lilao e publicado em 2006, no volume III de História da Universidade de Salamanca. Por fazer parte do Grupo de Trabalho de Patrimônio Bibliográfico da Rede Espanhola de Bibliotecas Universitárias (Rebiun) e trabalhar em uma biblioteca histórica, Becedas tem ainda, necessariamente, que publicar catálogos de exposições e guias dos acervos. Nesta entrevista à ComCiência, Becedas fala sobre a Biblioteca Antiga da Universidade de Salamanca, que abriga um grande acervo de obras raras em um espaço que remete o visitante a uma viagem entre personalidades que constituem a história da ciência, como Aristóteles, Darwin e Vesalius, entre outros.

 

ComCiência – A Biblioteca Antiga da Universidade de Salamanca foi criada junto com a universidade, em 1218, ou foi constituída posteriormente?

Margarita Becedas – As primeiras notícias sobre a origem de uma biblioteca no Estudio Salamantino (posteriormente Universidade de Salamanca) são de 1254, através do documento de reorganização do Centro de Estudos, escrito pelo rei Alfonso X, chamado “O Sábio”. O primeiro espaço documentado para uso da biblioteca data de meados do século XV. Ficava na parte alta da atual capela do prédio das Escuelas Mayores (onde ficavam os cursos das grandes faculdades como a de direito e de teologia) e tinha o teto pintado com motivos astrológicos. Atualmente, algumas dessas pinturas podem ser vistas em uma sala do pátio das Escuelas Menores e são conhecidas como “O céu de Salamanca”. O espaço atual também se encontra na Escuela Mayor e foi construído no início do século XVI. Após uma demolição ocorrida no século XVII, foi reconstruído em meados do século XVIII, em grande parte, tal como nós o conhecemos agora. Junto com o grande salão barroco, que contém livros impressos, há um pequeno cofre com armários e pinturas do século XVII, que abriga os manuscritos e incunábulos, ou seja, obras impressas desde o nascimento da impressão com tipos móveis, em meados do século XV até 1501.

 

ComCiência – Quantos títulos são encontrados hoje na Biblioteca Antiga da Universidade de Salamanca?

Margarita Becedas – O tipo de acervos da Biblioteca de História Geral, que pertencem à Biblioteca Antiga, são: acervo histórico – manuscritos, incunábulos e materiais impressos até 1830; acervo relacionado com Salamanca – publicações salamantinas anteriores ao Depósito Legal; o Depósito Legal (1958-1982), com publicações da Universidade de Salamanca (desde 1943), obras de valor histórico para Salamanca ou para a universidade; legados e doações; acervos multidisciplinares universitários desde 1830; acervo moderno de apoio à investigação. Ainda a respeito do acervo histórico, na sala anexa à Biblioteca Antiga se encontram 2805 manuscritos e 485 incunábulos. Há cerca de 60 mil livros impressos até 1830, dos quais 38.937 estão instalados na Biblioteca Antiga e o resto em depósitos no interior da biblioteca.

 

ComCiência – Todos esses títulos recebem a classificação de obra rara?

Margarita Becedas – Os manuscritos são, por sua própria natureza, exemplares únicos. O texto que eles contêm, por vezes, é encontrado em outros trabalhos, incluindo impressos, mas de um ponto de vista bibliográfico, um manuscrito é sempre único. Temos muitos manuscritos inéditos cujo texto é raro. Há também muitos com preciosas iluminuras, ouro e pergaminhos finíssimos.

 

ComCiência – Quais obras da biblioteca a senhora destaca como principais e por qual motivo?

Margarita Becedas – É difícil escolher apenas algumas, mas devo mencionar uma das mais antigas, o Liber canticorum horarum, livro de orações em latim escrito no século XI, para a rainha Sancha de Castela e Leão. Também gostaria de citar o nosso exemplar do Livro de bom amor, do século XIV, um dos primeiros da literatura em língua castelhana, ou seja, em vernáculo e não em latim. O Códice calixtino, que trata da vida do apóstolo São Tiago e das peregrinações do caminho jacobeo (de Santiago de Compostela a Finisterra). A lista é muito grande: bíblias em finíssima pele de vitela e repleta de iniciais pintadas com ouro do século XIII, elegantes exemplares humanistas, livros científicos, jurídicos, de textos clássicos gregos e latinos... Quanto aos incunábulos, nossa coleção é bastante extensa. Há magníficos exemplares alemães e venezianos, mas eu, particularmente, gosto de incunábulos impressos em Salamanca. São mais rudimentares do que muitos europeus. Entre eles estão, por exemplo, as primeiras constituições impressas da universidade, uma boa parte das obras de Antonio de Nebrija, alguns incunábulos científicos com ilustrações xilográficas e até mesmo um livro sobre o jogo de xadrez com ilustrações de execuções. Finalmente, entre os livros impressos desde o século XVI, existem verdadeiras jóias e muitas primeiras edições ou itens exclusivos.

 

ComCiência – Há registro de obras importantes que foram perdidas ou que não resistiram ao tempo? Quais os principais motivos de perdas?

Margarita Becedas – Ao longo de sua história, exceto por alguns momentos ruins (a destruição do século XVII ou a guerra contra Napoleão Bonaparte no início do século XIX), a biblioteca tem ganhado muito mais acervos do que perdido. Além de compras e doações, herdou os livros do Real Colégio da Companhia de Jesus de Salamanca, das bibliotecas das escolas antigas de Salamanca e até dos mosteiros e conventos da província. Desde então, em todas as épocas, desapareceram algumas obras e os antigos inventários reconhecem alguns livros que não estão mais, mas não nos consta nenhum que se possa considerar fundamental. Talvez a falta no arquivo de algum documento de fundação, na biblioteca, as primeiras constituições manuscritas, que em algum momento tiveram que estar ali. Entre os manuscritos das escolas, que foram levados para Madri no final do século XVIII e voltaram em 1954, foram detectados erros graves, mas uma boa parte foram apropriações indevidas dos franceses ou presentes do rei Fernando VII, no início do século XIX, a seu aliado, o duque de Wellington. Alguns deles foram posteriormente recuperados. Também é sabido que muitos livros de mosteiros desapareceram antes de chegarem à biblioteca, durante o confisco no século XIX, principalmente porque eles foram vendidos. Infelizmente, é difícil evitar o roubo ou a destruição, mas agora temos um controle muito rigoroso das consultas e até mesmo livros já digitalizados que, muitas vezes, nem mesmo estão disponíveis nas salas.

 

ComCiência – Das doações recebidas, quais poderiam ser apontadas como mais relevantes?

Margarita Becedas – Junto com os livros comprados e produzidos para e pela universidade, nossa biblioteca tem se beneficiado de diversas doações legais (expulsão dos jesuítas e o fechamento de escolas no século XVIII, o confisco dos bens da Igreja no século XIX). Mas a biblioteca é muito admirada pelos professores antigos e ex-alunos da universidade, de modo que recebeu grandes doações particulares em todas as épocas (a primeira realmente importante ocorreu no século XV). Doações de grande porte são escassas agora; no entanto, o século XX trouxe-nos algumas bibliotecas privadas muito ricas e doações de livros avulsos de grande categoria. Lembro-me de um par de exemplares do grande impressor italiano Bodoni ou a primeira edição de Emile, de Rousseau, ou a Crítica da razão pura, de Kant, para citar apenas as doações nos últimos anos.

 

ComCiência – Há alguma área do conhecimento que seja mais destacada na biblioteca, como filosofia, medicina, teologia ou direito? Esses eram os principais focos de ensino na universidade, não?

Margarita Becedas – Por ser uma biblioteca de caráter universitário e ser herdeira de centros universitários e religiosos, estão faltando, por exemplo, as primeiras edições da literatura espanhola, que antes não eram objeto de estudo na universidade. Mas há uma série de importantes obras teológicas e jurídicas, que tradicionalmente têm sido as faculdades mais importantes de Salamanca. As coleções de filosofia, ciências e medicina antigas, e de geografia e astrologia são também excelentes.

 

ComCiência – Houve um período em que foi dada maior atenção para esta biblioteca?

Margarita Becedas – Embora a biblioteca tenha nascido no século XIII e sido construída no século XVI – a Idade de Ouro da Universidade de Salamanca –, o grande renascimento da biblioteca ocorreu no século XVIII, após a reconstrução da sala. Nesse século, triplicaram os acervos bibliográficos, com a chegada dos livros dos jesuítas e das escolas, além de terem sido comprados muitos livros para os estudantes. Foi também o momento em que os bibliotecários começaram a ser contratados, trabalharam duro e bem e, assim, foram lançadas as bases do que é a atual Biblioteca. Eu acho que no século XVIII, a biblioteca recebeu um forte e definitivo impulso, na realidade, superior a qualquer outro momento da sua história.

 

ComCiência – Nos últimos anos, que projetos têm sido desenvolvidos para dar mais visibilidade ao acervo que a Biblioteca Antiga dispõe?

Margarita Becedas – Em meados do século XX, a biblioteca foi consideravelmente ampliada, com novos espaços e com os manuscritos de colégios antigos que estavam em Madri. No final do século XX e começo do século XXI, foi dado um grande salto catalográfico e tecnológico, com o catálogo on-line e a criação da biblioteca digital, que permitem consultar o texto completo através do catálogo ou do repositório institucional “Gredos”, uma grande parte dos manuscritos, impressos antigos e publicações periódicas salamantinas históricas. Também tem havido, nos últimos anos, como em todas as bibliotecas, uma “revolução” em atendimento ao usuário. Até poucos anos atrás, as bibliotecas históricas se ocupavam, fundamentalmente, da conservação. Agora temos que conciliar a preservação com a promoção e a visibilidade dos acervos.

 

ComCiência – O trabalho de catalogação do acervo realizado recentemente segue nessa direção? Em que medida ele tem facilitado a pesquisa sobre o acervo?

Margarita Becedas – Entre 2001 e 2007, tivemos uma equipe de catalogação e digitalização financiada pela Fundação Marcelino Botín, ligada ao Banco Santander. Mas o projeto acabou, e a catalogação dos livros não foi concluída. Agora avançamos, pouco a pouco. Este projeto de análise exaustiva dos livros e de catalogação on-line tem feito com que se conheça melhor os acervos. Foram identificados dois incunábulos novos, que não sabíamos que tínhamos, e descobrimos edições e variações de edições muito raras... Em suma, podemos agora falar da riqueza de nossos recursos com muito mais propriedade do que antes. Logicamente, a catalogação na internet tem impulsionado o número de pesquisadores que nos pedem informações e cópias por email, sem a necessidade de vir à biblioteca, e temos notado também que os pedidos de empréstimos para exposições (colaboramos com uma média de quatro exposições ao ano, na Espanha e fora dela) são mais variadas. Antes eram conhecidos apenas alguns livros nossos muito famosos que eram pedidos sempre e agora se conhecem muitos outros.

 

ComCiência – Como é o trabalho de conservação e recuperação dos livros, mapas e documentos da biblioteca?

Margarita Becedas – Felizmente, o tipo de clima de Salamanca é bom para a conservação dos livros. Mesmo assim, todos nós nos preocupamos em fazer medições semanais da temperatura e umidade e ter bons cuidados de manuseio dos livros. É claro que existem muitos livros que necessitam de uma intervenção, mas isso é um processo longo e caro. Temos um pequeno laboratório de restauração e encadernação, em que trabalha uma restauradora. De vez em quando (uma ou duas vezes por ano), enviamos para restaurar algum livro ou publicação periódica antiga para uma empresa privada em Salamanca. Mas, principalmente, nós trabalhamos com dois centros públicos de restauração: um pertence ao Estado e outro à Junta de Castela e Leão. Por exemplo, nos últimos dois anos, temos sido capazes de restaurar todas as esferas celestes e terrestres da biblioteca (os livros redondos e gordos) e um grande coro manuscrito do século XVI. Todos estão agora disponíveis ao público.

 

ComCiência – Quem pode visitar a biblioteca e qual é a visitação anual?

Margarita Becedas – Por razões de segurança e preservação, não temos a Antiga Biblioteca aberta ao público e nem temos um horário para visitação. As visitas que nos chegam são sempre do tipo institucional , previamente autorizadas, de professores com alunos universitários. Nós também temos regras rígidas de que não se devem entrar simultaneamente mais de 20 ou 25 pessoas ou que um grupo com mais de oito pessoas não pode entrar em uma sala pequena de manuscritos. Apesar de todas essas limitações, temos um número grande de visitas por ano. Por exemplo, no ano passado, tivemos 315 visitas que reuniram 1.373 pessoas; junto a isso, tivemos oito seminários com alunos e seis gravações de meios de comunicação. Para os visitantes do prédio da universidade e turistas que não podem entrar na biblioteca, em 1995 foi colocada uma porta de vidro, que permite uma vista panorâmica completa da sala.