Cultura Brasil Campinas, São Paulo, Miércoles, 11 de mayo de 2011 a las 13:30
Arte Cultura

Uma biblioteca, uma obra rara e sete monges mortos

Sinais do clima intelectual do nosso tempo num romance histórico que ambienta assassinatos numa abadia fictícia de 1327.

ComCiência/Labjor/Danilo Albergaria/DICYT Com toda a probabilidade do mundo, o eventual leitor que abra um exemplar de O nome da Rosa hoje, trinta anos após sua primeira publicação, e encare ser transportado para uma abadia fictícia nas montanhas do norte da Itália no ano de 1327, já conhecerá as linhas gerais da trama urdida por Umberto Eco. Narrada pelo ingênuo Adso de Melk, a história da investigação do sábio inglês Guilherme de Baskerville sobre misteriosas mortes de monges termina com a descoberta dos assassinos e das armas, como numa boa história de Sherlock Holmes. No centro da intriga, um livro raro, raríssimo, e a maior biblioteca da cristandade medieval.

 

Engana-se, porém, quem pensa ser o livro apenas uma homenagem a Conan Doyle ambientada no século XIV. Eco fez questão de impregnar a conclusão de seu romance histórico com o clima intelectual do final do século XX – em certo sentido, oposto às certezas novecentistas. Predomina ao final uma sensação de incômodo: o sucesso da investigação é relativo, seus resultados são contaminados pelo próprio investigador, seus caminhos são tortuosos e orientados pelo acaso, mais por acaso do que pela inegável argúcia do detetive, incapaz de construir uma interpretação unívoca dos acontecimentos. Por fim, culmina em desgraça: a apoteótica destruição da abadia num enorme incêndio. Num mundo de fixação pela ordem, a desordem riu por último.

 

 

Publicado originalmente em 1980, O nome da Rosa é o romance de estréia de Eco – que, até então, dedicava sua escrita apenas a ensaios e tratados de semiótica. Alcançou enorme sucesso editorial à época de seu lançamento e, como acontece muitas vezes com os best-sellers, foi adaptado para o cinema, arrebatando um público ainda maior. Por isso, não é pecado o resenhista entregar com facilidade o enredo. Afinal, já o conta o conhecidíssimo filme – com Sean Connery, o jovem Christian Slater, e F. Murray Abraham – que sequer resvala nos temas mais significativos do romance, o que é um ótimo motivo para lê-lo. Vamos à trama.

 

A trama

 

O monge franciscano Guilherme de Baskerville revela-se o Holmes em pessoa (muito além do sobrenome). Nas primeiras páginas, dá mostras de observação minuciosa e lógica cortante. Discípulo de Roger Bacon, Guilherme está mais inclinado a valorizar os dados empíricos e menos afeito a responsabilizar intervenções sobrenaturais ou divinas nas intrigas humanas. Logo, o ex-inquisidor, que colocava em dúvida o papel do demônio nos casos de heresia que investigou, percebe que há algo demasiadamente humano por trás das sucessivas e misteriosas mortes de monges, durante sua estada na abadia. Adso, seu aprendiz, narra como o obtuso Watson: vê quase tudo mas não entende quase nada. Porém, como Guilherme, percebe rapidamente que a vasta biblioteca da abadia esconde mais do que livros raros – talvez, segredos menos respeitáveis, perigosos para a alta reputação gozada pelo lugar. Não há acesso direto aos livros. Tudo é mediado pelos bibliotecários. Mas, à noite, a dupla se esgueira por passagens secretas que não resistem ao faro de Guilherme, e ganha acesso ao imenso acervo de livros. Em meio à descoberta de tesouros literários, percebem estar num labirinto e custam a sair dele.

 

Quando um monge é encontrado enfiado de cabeça para baixo num caldeirão de sangue suíno, o ancião Alinardo de Grottaferrata, o homem mais velho da abadia, associa as mortes às trombetas do Apocalipse: a primeira trombeta fala de uma chuva de granizo e sangue; de fato, o primeiro monge morreu durante uma tempestade e seu corpo foi encontrado entre as pedras que cercavam a abadia; a segunda trombeta fala que o mar virará sangue, e que criaturas morrerão nesse mar de sangue. E, de fato, havia um monge mergulhado em sangue.

 

Diferentemente de Alinardo, Guilherme não está disposto a pensar que os céus estejam desempenhando algum papel nos assassinatos, mas segue a tese levantada pelo velho. A ideia de que o assassino estivesse buscando emular a ordem das trombetas para difundir alguma mensagem entre os monges captura sua imaginação. De fato, as mortes subsequentes parecem seguir a ordem do Apocalipse. O senil Alinardo poderia, portanto, ter descoberto sem querer uma chave para interpretar os sinais e chegar ao assassino. O investigador se convence dessa estrutura.

 

Eis um erro que, no entanto, não impede que Guilherme seja colocado quase ao acaso (e, também, graças a um sonho de Adso) nos trilhos que levam corretamente a Jorge de Burgos, outro ancião do mosteiro. A voz deste é, ao contrário da de Alinardo, sã, ouvida e respeitada. Jorge é o verdadeiro guardião da biblioteca e das boas maneiras intelectuais entre os monges. Vigilante, detesta e condena o riso no scriptorium, local de trabalho dos copistas e ilustradores: “o riso é incentivo à dúvida”, diz.

 

Jorge de Burgos é cego. Qualquer leitor mais ou menos atento saberá ver aí uma homenagem ao literato e escritor argentino Jorge Luis Borges. A profundidade da analogia, entretanto, deverá ser julgada por cada um: no Pós-escrito a O nome da Rosa, Eco limita-se a dizer que “biblioteca mais cego só pode dar Borges, mesmo porque as dívidas se pagam”.

 

De volta à trama: como Guilherme descobre no final, Jorge é o responsável pelo envenenamento de três dos monges mortos, mas nem todas as mortes são obra de Jorge. O primeiro monge havia se jogado do alto do edifício, como temia o abade e deduzira Guilherme. Adelmo, o ilustrador suicida, pôs término à própria vida provavelmente perturbado por ceder favores sexuais a Berengário, o ajudante do bibliotecário, que em troca lhe deu acesso a um livro raríssimo. Venâncio, o tradutor, morre envenenado ao folhear o livro. O mesmo destino tem os curiosos Berengário e Malaquias, o bibliotecário, que mata Severino, o herbalista, para recuperar a posse do livro. Folheá-lo, levando o dedo à língua para facilitar o ato, sela o destino dos monges envenenados pela substância aplicada naquelas raras páginas pelo ancião cego.

 

A desordem do mundo

 

O tomo envenenado pelo zeloso Jorge de Burgos é o segundo livro da Poética, de Aristóteles, uma obra mais do que rara: de fato, nunca foi encontrada, mas sua existência foi sugerida pelo próprio Aristóteles e tida como quase certa por estudiosos da obra do filósofo grego. A obra perdida seria dedicada à análise da comédia. Aristóteles, a grande autoritas no medievo, considerando a sério o valor poético do riso e do fazer rir: eis um bom motivo para Jorge evitar que o livro fosse lido e que sua mensagem fosse transmitida adiante.

 

Desapontado pelos resultados da investigação, Guilherme reconhece que estava errado, que chegou a conclusões certas por premissas falsas. Um golpe duro em seu orgulho intelectual. Na tentativa de consolar o mestre, Adso lembra que Guilherme havia conseguido chegar à resolução do mistério. Afinal, descobrira o essencial – na caricatura do mistério policial moderno: os assassinos e as armas, o quem e o como. Além disso, o mestre de Adso havia deduzido, com grande precisão e apenas com dados externos do edifício, a estrutura interna da biblioteca – o que lhes possibilitou uma orientação segura pelo labirinto e a descoberta de uma importante sala secreta.

 

O problema, para Guilherme, é que nada disso constitui um prêmio satisfatório. Os interesses, as motivações íntimas de cada personagem envolvido na intriga, o verdadeiro papel desempenhado por cada um e a natureza de suas relações: tudo isso, em grande medida, lhe escapa. O detetive está ciente de que Jorge manipulou os sinais sabendo que Guilherme estava seguindo uma pista errada (ou, se preferir, estava interpretando os sinais de maneira incorreta). Além disso, algumas mortes ocorrem por causa da investigação. Dito isso, é como se Umberto Eco estivesse afirmando algo muito próximo a uma das ideias caras à filosofia da ciência contemporânea: que a teoria precede e modela os experimentos e observações da realidade. O conhecimento seria em grande parte elusivo, pois nenhuma base empírica é objetivamente válida, nenhum dado experimental é necessariamente puro, livre de perturbações causadas pela própria investigação. A teoria orienta o olhar do investigador, molda as experiências e seus métodos de análise.

 

O Jorge de O nome da Rosa não é apenas inimigo do riso, mas também nutre um “ódio à filosofia”, como diz Guilherme. A biblioteca, para Jorge de Burgos, deveria servir como prisão do saber, não como o lugar de onde o conhecimento é irradiado e difundido. Trata-se de um saber que se quer fechado às transformações. Já a “biblioteca de Babel”, de Jorge Luis Borges, não é fisicamente um labirinto, mas é infinita. A infinidade de maneiras com que os caracteres poderiam ser ordenados em infinitos livros apontam para uma realidade labiríntica, cujos sentidos são sempre fugidios e elusivos. Lá, a verdade poderia estar em todos os lugares, mas não deve estar em lugar algum.

 

Nada mais distante disso do que perscrutar uma ordem divina nos signos presentes nas escrituras ou sondar os sinais em busca de uma ordem subjacente ao mundo natural. O clima intelectual do final do século XX, quando O nome da Rosa foi escrito, não apenas havia abandonado há muito essas esperanças, mas apontava também para uma direção em que qualquer tentativa de ousar conhecer o mundo era seriamente questionada. É o que o livro tem de pós-moderno: os sinais, as pistas, poderiam ser ordenados de diversas maneiras e muitas delas produzem os mesmos sentidos por caminhos diferentes, da mesma forma que sentidos diferentes poderiam ser produzidos percorrendo o mesmo caminho. O orgulho intelectual do detetive foi derrotado não por estar errado, mas porque nenhuma ordem por ele encontrada no caos dos acontecimentos seria o espelho fiel da realidade.

 

Não vamos muito longe, contudo. Ao contrário de Jorge, Guilherme mostra-se avesso à idolatria da verdade. Eco, seu criador, discorda de maneira veemente dos desdobramentos mais radicais da obra de Jacques Derrida, que apontam para uma infinidade de interpretações possíveis, melhor sintetizados pela frase “todas as interpretações são válidas”. Nem mesmo para um romance – uma “máquina de gerar interpretações”, nas palavras de Eco – isso vale. Foi Jorge quem envenenou o livro de Aristóteles, não Guilherme. A abadia e a biblioteca queimaram no incêncio final. No mundo inventado por Eco, Adso e Guilherme teriam morrido em chamas se não tivessem ousado saber a estrutura do labirinto. A realidade, ainda que fictícia, está lá. Nem tudo vale.