Cultura Brasil Campinas, Brasil, Martes, 26 de noviembre de 2013 a las 11:10

Arte: uma questão de olhar

Exposições fotográficas, arquitetura e grafite que desconstroem o conceito de arte como uma amostra fiel da realidade

Carolina Medeiros, Fernanda Domiciano e Kátia Kishi/Labjor/ComCiência/DICYT -  Seja nas artes plásticas, nas exposições fotográficas, na arquitetura ou no grafite, o conceito de arte como uma amostra fiel da realidade não é mais aplicado na contemporaneidade. Na arte contemporânea, os artistas incorporam, sim, em suas obras, elementos do cotidiano, o efêmero e os valores difundidos pelos meios de comunicação de massa. Mas o marco que rompeu com o conceito de arte como representação do real foi o polêmico quadro nonsense do belga René Magritte Ceci n’est pas une pipe (Isto não é um cachimbo), ao demonstrar a “traição das imagens”, que por mais reais que aparentem ser, continuam sendo apenas desenhos.

 

No campo das artes plásticas, muitas são as obras criadas com o objetivo de formar ilusões visuais, sendo dois artistas especialistas nisso: o holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972) e o argentino Leandro Erlich. Para muitos estudiosos e apaixonados por arte, Escher era um artista de enigmas. Suas obras se tornaram mundialmente famosas por representarem construções impossíveis, preenchimento regular do plano, explorações do infinito, além de sua capacidade de gerar imagens com impressionantes efeitos de ilusões de óptica, e notável qualidade técnica e estética ao respeitar as regras geométricas do desenho e da perspectiva.

 

O argentino Leandro Erlich, nascido em 1973, ficou conhecido por suas esculturas e instalações famosas ao perturbar o que aparentemente está normal, expondo a realidade como falsa. Ele se inspira em seu conterrâneo, o escritor Jorge Luis Borges, e nas referências do mundo do cinema, tendo admiração por diretores como Alfred Hitchcock, Roman Polanski, Luis Buñuel e David Lynch, que, segundo ele, “têm usado o cotidiano como uma etapa para a criação de um mundo ficcional, obtido através da subversão psicológica dos espaços cotidianos”. Mas afinal, como explicar o fenômeno causado pelas obras desses dois renomados artistas? O tipo de ilusão, nesse caso, é a ótica, termo que se aplica a todas as ilusões que “enganam” o sistema visual humano e permite ver qualquer coisa que não está presente; ou se está, vê-la de um modo errôneo.

 

Nas ruas, esse jogo entre a realidade e a ilusão vai além dos conceitos ou temáticas e fica mais evidente ao se observar as diversas técnicas que trabalham componentes reais e imagens ilusórias, tanto em duas quanto em três dimensões, ao mesclar cores e traços que trazem perspectivas diferentes e se misturam com elementos reais. “É bacana usar o ambiente para participar da ideia inicial da pintura, porque vai agregar valores ao espaço”, justifica o grafiteiro brasileiro, Luís Seven Martins (L7M).

 

Enquanto para os animais a camuflagem é uma adaptação do mecanismo de defesa e sobrevivência ao se “misturarem” com o ambiente, seja pela cor ou forma, para o homem, é um método de formar ilusões de ótica, perceptível na arte das ruas como integração do desenho. De acordo com o grafiteiro, esse efeito ocorre muitas vezes por acaso, mas o interessante é quando o artista utiliza as áreas comuns do espaço urbano a seu favor porque “são agregados valores diferenciados ao espaço, além da ideia a ser transmitida se tornar mais objetiva durante a elaboração do trabalho”.

 

O grafite é amplamente conhecido como um modelo de arte capaz de quebrar a sequência de tijolos de um muro; a diferença desse conceito em relação aos cenários planificados de Eric Grohe, é que esse artista vai além da simples ilustração e abusa da técnica de profundidade em seus desenhos, os quais dão a ideia de continuação da “realidade pelas paredes”, com minucioso cuidado nos detalhes.

 

Outra arte urbana em que a ilusão é bastante trabalhada é a pintura em 3D, marca do argentino Eduardo Relero, que não se prende apenas aos muros, mas expande sua imaginação para o asfalto e outros elementos urbanos que possam compor seu trabalho. A anamorfose 3D aplicada em seu trabalho é uma deformação do desenho que o torna confuso quando visto frontalmente, mas ilude com a ideia de tridimensionalidade quando visto em determinada angulação.

 

A tridimensionalidade também pode ser explorada pelo Flooting Graffitti. Nessa técnica, o desenho é fragmentado e redimensionado em várias áreas e em determinado ponto, é possível distinguir o conteúdo por inteiro, formando a ilusão de ótica. Usando essa técnica, o coletivo espanhol “ boamistura” mobilizou os moradores da Vila Brasilândia, de São Paulo, para montarem palavras como “amor”, “paz” e “firmeza”.

 

“A fotógrafa que não fotografa”

 

Se a pintura e o grafite exploram claramente os efeitos ilusórios, o que dizer da fotografia? A artista Rosângela Rennó é conhecida como a “fotógrafa que não fotografa”. Formada em arquitetura pela Universidade Federal de Minas Gerais, em artes plásticas pela Escola Guignard de Belas Artes da Universidade do Estado de Minas Gerais e doutora em artes pela Universidade São Paulo, Rennó utiliza materiais diversos para montar suas exposições, como materiais autobiográficos, álbuns de família, fotos 3x4 de anônimos, jornais, álbuns de retratos vendidos em feiras populares e arquivos de identificação criminal.

 

“Ela tem algumas características particulares. Muitos artistas se expressam por meio da fotografia. Rennó, não. Como artista plástica, ela se expressa pelos jogos que faz com a imagem fotográfica e seus códigos de representação, Ela as tira de suas situações de origem, como arquivos, álbuns e jornais, e as mescla com outras imagens e objetos, criando esculturas e instalações”, afirma Fernando do Nascimento Gonçalves, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

 

Segundo Gonçalves, em sua obra Arquivo Universal, Rennó segue a mesma linha de investigação de seus trabalhos anteriores em torno da imagem fotográfica, que tem como temas identidade, o ciclo de vida da imagem, memória e esquecimento, além da noção de poder. “Nesse projeto, é possível reconhecer o mesmo desejo da artista de nos levar a suspeitar do que se vê ou do que não se vê. Através de um jogo entre a opacidade e a exaustão da imagem, Rennó propõe-nos uma espécie de reencantamento do olhar, através da incitação à criação de imagens por associações mentais, por meio de resíduos de fotografia”, explica.

 

Rennó trabalha com o conceito de que imagens não são um espelho do real, mas implicam, sim, em códigos de representação. “Os artistas contemporâneos usam códigos de representação que estão no mundo para nos fazer ver as coisas. Brincam com a ideia do real, o que vai na contramão, por exemplo, da pretensa ideia de narrativa do real do fotojornalismo”, afirma o professor da Uerj. Para Gonçalves, a artista quebra, ainda, o modelo histórico de contemplação das imagens e opta pela interatividade gratuita. “Ela utiliza vários elementos que dificultam o olhar para que isso gere atenção. Ela faz um jogo, uma pegadinha. Tira a gente do patamar confortável”, afirma.

 

Reconhecida por suas obras engajadas, Rennó tem vários trabalhos reconhecidos e premiados, como Atentado ao Poder: Via Crucis, de 1992, sobre as consequências da irresponsabilidade ambiental, Candelária, de 1993, a respeito do massacre de meninos de rua, na Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, além de Imemorial, de 1994. Em Imemorial, Rennó trabalha com mais de 15 mil arquivos de operários que trabalharam na construção de Brasília, encontrados em um armazém do Arquivo Público do Distrito Federal. Imagens compostas por trabalhadores e crianças que morreram no processo de construção de Brasília foram expostas pela artista. Imemorial contou com cinquenta fotografias, 40 delas em película ortocromática e 10 retratos em papel resinado.

 

No artigo “Quando os operários mortos visitam Brasília: os espectros fotográficos de Imemorial, de Rosângela Rennó”, publicado na Revista Poiésis em 2009, o professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-RS, Ricardo Barbarena, afirma que a obra instaura um espaço no qual o ato de fotografar passa a ser entendido como a possibilidade de estancar o fluir de uma imagem já concebida em um dado mundo à margem dos aparatos institucionais. “Com o resgate desses arquivos da exposição Imemorial, a artista consolida a fotografia como uma possibilidade de parar o tempo, como o meio de reter uma imagem que não será mais esquecida pela memória, como um processo capaz de reproduzir o eixo imagético que nos cerca e nos perturba, como uma ilusão de ótica resultante de uma porção de manchas sobre o papel”, avalia.

 

Não se trata de ilusão, mas ficção

 

Para Gonçalves, da Uerj, a ideia de ilusão na arte vem sendo pensada de outra forma pelos artistas da atualidade. “A arte contemporânea não tem o desejo de criar ilusões. A ideia que se traduz hoje é a da ficção. O artista não opõe mais ficção com realidade. A ficção é validada por si só. A arte contemporânea não representa as coisas, mas pensa nas representações”, afirma.

 

Rogério Ghomes, doutorando em tecnologias da inteligência e design digital na PUC-SP e professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL), na arte contemporânea, a palavra “ilusão” poderia ser substituída por “simulação”. “O artista tem a possibilidade de fazer uma simulação do espaço real para o público interpretar, de acordo com seu repertório”, explica.

 

Na contemporaneidade, o público pode interagir com o artista ou com a obra. Um exemplo da interatividade das pinturas com objetos reais e pessoas é o trabalho do artista lituano Ernest Zacharevic desenvolvido nas ruas da Malásia, que unificou a bidimensionalidade dos desenhos com as três dimensões dos mais variados objetos que compõem uma imagem. “Até a arte moderna, o público era passivo. Na arte contemporânea, as pessoas são convidadas a interagir, a interferir. Isso antes não cabia ao espectador”, afirma Ghomes.