Entre cobras, lagartas e cacatuas – estratégias da natureza que confundem e surpreendem
Giselle Soares e Cristiana Delfina/Labjor/ComCiência/DICYT - A cacatua Snowball é uma celebridade mundial. O pássaro, que vive em um santuário de aves nos Estados Unidos, ganhou fama após aparecer, há poucos anos, em um vídeo em que dançava de maneira sincronizada ao som de "Everybody", do grupo americano Backstreet Boys. Snowball também apareceu em programas de grande audiência, como o Late Show, no canal Animal Planet e até mesmo em um comercial da rede fast food Taco Bell. O comportamento inusitado chamou atenção dos pesquisadores Aniruddt Patel e John Iversen do Instituto de Neurociências de La Jolla, na Califórnia, e Micah Bregman, da Universidade da Califórnia em San Diego, e resultou no artigo “Investigating the human-specificity of synchronization to music”, escrito em parceria com Irena Schulz e Charles Schulz, do santuário Birdlovers Only Rescue Service, onde Snowball vive. Publicado nos anais da 10ª Conferência Internacional sobre Percepção Musical e Cognição, realizada em 2008 em Sapporo, no Japão, o artigo documentou o primeiro caso de um animal que, sem treinamento, podia se mover de acordo com a batida da música.
Por meio do estudo com Snowball, a equipe de Patel chegou à conclusão de que a capacidade de aprendizagem vocal demonstrada por humanos, papagaios, golfinhos e outras espécies fornece a base motora e auditiva para a sincronização com o ritmo da música. Adena Schachner, da Universidade de Harvard, também realizou estudos com Snowball e com Alex, um papagaio-cinzento que também demonstrava habilidade de "dançar", e os resultados foram publicados em 2009, no artigo “Spontaneous motor entrainment to music in multiple vocal mimicking species” na revista Current Biology. Além da pesquisa com Alex e Snowball, Schachner analisou vídeos do YouTube para buscar evidências de outros animais que demonstrassem essa mesma capacidade. Assim como os estudos de Patel, o artigo da pesquisadora sugere que as espécies que aparentemente possuíam a habilidade eram capazes de reproduzir os sons que escutam por imitação, o que os pesquisadores chamam de mimetismo vocal. Laura Kelley, da Universidade de Cambridge explica, no artigo "Vocal mimicry in songbirds” que o mimetismo vocal consiste na capacidade de copiar a vocalização de outras espécies ou sons ambientes, e que é muito comum em pássaros.
Mimetismo e camuflagem
O termo "mimetismo" tem origem na expressão grega mimetés, que significa imitação. A coordenadora do Laboratório de Fisiologia Comparativa da Pigmentação do Instituto de Biociências da USP, Maria Aparecida Visconti, define o mimetismo na natureza como a presença, em indivíduos de determinada espécie, de características que os confundem com indivíduos de outra espécie. Segundo Visconti, essa semelhança pode se dar principalmente no padrão de coloração, mas outras particularidades como a forma do corpo e a presença de determinadas substâncias, conferem a esses organismos alguma vantagem adaptativa.
Muitas vezes o mimetismo é confundido com a camuflagem ou cripticidade, em que o organismo se mistura com o meio em que vive. "Pode ser um predador, que dessa forma consegue se aproximar de sua presa sem que esta perceba, ou pode ser um recurso das presas, que conseguem se esconder mais facilmente de eventuais predadores", explica Visconti.
Uma espécie que apresenta mimetismo e camuflagem é o bicho-pau, também conhecido em algumas partes do Nordeste como mané-magro, objeto de pesquisa de Nathália Coelho Vargas, mestre em biologia animal pela Universidade Federal de Viçosa e professora do curso de Ciências Biológicas da Faculdade Cathedral de Boa Vista, em Roraima. Ela esclarece que esses insetos liberam uma secreção amarelada e viscosa para assustar seus predadores, como se fossem venenosos, e ainda se confundem com os galhos onde se encontram.
"Quando ameaçado, o bicho-pau balança o corpo com movimento semelhante dos galhos. Eles se camuflam por coloração crítica, que pode se alterar de acordo com o ambiente onde se encontram, como outra forma de defesa", explica Vargas. Ela lembra, ainda, que existem diversos tipos de mimetismos, que podem ser classificados quanto ao valor adaptativo que beneficia a espécie imitadora ou quanto às diferentes funções que desempenham na vida do organismo. " Mimetismo não é nada mais e nada menos que uma semelhança física ou comportamental, é um mecanismo adotado por uma espécie que imita outra com a finalidade de proteção contra seus respectivos predadores", complementa a pesquisadora, em consonância com a fala de Visconti.
Vargas aponta outros exemplos das vantagens que essas adaptações proporcionam a diversas espécies de animais e plantas, como de orquídeas, aranhas, lagartas e borboletas. As flores da orquídea Ophrys apifera mimetizam fêmeas de abelhas, liberando um odor para atrair os machos. Assim, quando o zangão tenta copular com a flor, ele se enche de pólen e contribui para a reprodução da orquídea. A lagarta Euchelia jacobaea, berrantemente colorida com faixas amarelas e negras, é rejeitada por aves insetívoras após um contato mínimo, devido a secreções nauseantes que emanam. Vargas explica que as vespas que trazem o mesmo padrão de coloração têm igualmente um gosto nauseoso, por causa de seus órgãos digestivos. As aves, após terem atacado vespas ou lagartas daquelas espécies, rejeitam qualquer inseto com o mesmo tipo de padrão cromático.
O estudo desses mecanismos de adaptação é importante para a compreensão das relações ecológicas entre os animais e o meio em que vivem, do próprio conceito de evolução de Charles Darwin e dos mecanismos de coloração e termorregulação enquanto atributos essenciais para a manutenção das populações em ambientes naturais. C itando estudos do biólogo evolutivo e geneticista inglês Ronald Fisher (1930), Elynton Alves do Nascimento, doutor em ciências na área de entomologia pela USP, afirma em sua tese que o mimetismo é a melhor aplicação pós-darwiniana do conceito da seleção natural, tendo contribuído muito para o avanço das ciências naturais por chamar atenção para a importância das observações ecológicas na interpretação do material depositado em museus.
O desequilíbrio dos ambientes afeta diretamente espécies que dependem deles para se proteger, pois pode impedir sua livre circulação "disfarçada" entre as formas, cores e texturas conhecidas. No caso de indivíduos mímicos, se as espécies originalmente venenosas (ou perigosas, por outras razões) são extintas, não servirão mais como referências evolutivas a serem evitadas. Ou seja, as "cópias" também ficam ameaçadas.
O pesquisador brasileiro Renan Janke Bosque, doutorando pela Universidade do Mississipi pelo programa Ciência sem Fronteiras, desenvolve uma pesquisa que objetiva contribuir para a compreensão da evolução do mimetismo, utilizando as serpentes com o padrão coral como modelo. Segundo ele, diversas hipóteses têm sido levantadas para explicar o aparecimento desse padrão de coloração. " A mais aceita é que o padrão coral serve como um sinal de advertência de periculosidade para os potenciais predadores. Dessa maneira, a serpente se beneficia dessa sinalização, pois evita uma tentativa de predação. Porém, uma das premissas para que o mimetismo tenha sucesso como estratégia adaptativa é que modelo e mímico apresentem a mesma distribuição geográfica", elucida Bosque.
Com sua pesquisa, Bosque pode concluir que o gênero Oxyrhopus (serpente coral falsa) apresenta uma distribuição geográfica associada ao gênero Micrurus, a "verdadeira" coral, uma das serpentes mais venenosas do Brasil. Entretanto, essa sobreposição não é coincidente para todos os tipos de coloração encontrados nesses gêneros, indicando que outras possíveis explicações, que não o mimetismo, podem levar ao aparecimento dessa coloração em Oxyrhopus.
Seja em cobras corais, lagartas, ou orquídeas, o mimetismo e a camuflagem se configuram como surpreendentes estratégias desenvolvidas para ludibriar predadores e sobreviver às adversidades.