O espantoso comportamento das lagartixas insulares
José Pichel Andrés/DICYT Todo ano, o catedrático de Zoologia da Universidade de Salamanca, Valentín Pérez Mellado passa boa parte de seu tempo na Isla del Aire, um ilhote situado ao Sudeste de Menorca no qual estuda, há décadas, o fascinante comportamento de uma lagartixa negra endêmica e, sobretudo, as interações que estabelece com seu ambiente.
Valentín Pérez Mellado descreveu, em 1997, ao mesmo tempo em que uma equipe do CSIC que trabalhava de forma independente, o primeiro caso conhecido no mundo de um réptil que polinizava uma planta. Era a lagartixa balear (Podarcis lilfordi), que sobe no funcho marinho (Crithmum maritimum) para sorver o nectar de suas flores. Os grãos de pólen ficam colados e, ao mover-se de planta em planta, as polinizam. Hoje em dia, já estão descritos outros casos semelhantes, contudo aquele “resultado espetacular” foi só o primeiro de uma série de descobertas surpreendentes acerca deste réptil.
A Podarcis lilfordi sobrevive sozinha nos ilhotes que rodeiam Mallorca e Menorca desde que os romanos introduziram predadores que acabaram com ela nas ilhas maiores. Na verdade, é uma das três únicas espécies endêmicas de Baleares, junto com outra lagartixa, Podarcis pityusensis, que habita Ibiza e Formentera, e o sapo-parteiro-de-maiorca ou sapo-baleares (Alytes muletensis) da Sierra de Tramontana. Os ecosistemas insulares oferecem “fenômenos muitos peculiares”, comenta o pesquisador em declarações à DiCYT. A escassez de fauna faz com que muitos animais vivam sem a ameaça de predadores, com isso há uma alta densidade populacional, entretanto perdem seus mecanismos de defesa e, às vezes, dispõem de poucos recursos para se alimentarem, de forma que estas lagartixas se tornaram onívoras.
Especialmente no mês de abril, a subespécie que habita a Isla del Aire, Podarcis lilfordi lilfordi, se relaciona de uma forma espantosa com uma planta que provavelmente chegou à ilha a poucas décadas, a rapa mosquera (Drucunculus muscivorus). “ Tem mecanismos de polinização muito sofisticados” mediante os que enganam a alguns insetos, já que “imita o cadáver de um mamífero” através de uma folha grande, rosada e com pelos” e, sobretudo, um orifício através do qual sai um eixo floral termogênico, isto é, capaz de produzir calor, que desprende um forte odor de carne em descomposição. Desta forma, atrai moscas que põem seus ovos na carne podre, se introduzem no orifício e ficam presas. Por isso, também é conhecida como “tragamoscas”, mas não é uma planta carnívora. “As flores masculinas e femininas estão no interior do orifício, a mosca chega carregada com o pólen de outras plantas e, ao tentar escapar, o solta e fecunda as flores femininas; em seguida, estas flores fecham seus estigmas e as flores masculinas começam a produzir pólen que cai sobre a mosca, que, depois de várias horas, é liberada para que vá a outra planta e repita o processo”, explica Valentín Pérez Mellado.
Se este mecanismo já é fascinante, a relação que os cientistas observaram nos últimos anos entre o Drucunculus muscivorus e a lagartixa balear o é ainda mais. Os pesquisadores creem que a planta chegou à Isla del Aire há menos de 70 anos e, de fato, há pouco tempo apenas se havia visto tal planta, mas, de repente, o ilhote está invadido pela rapa mosquera.
Temperatura e alimento
O que aconteceu? A interação com a largartixa foi fundamental. Os répteis necessitam se termorregular e, de fato, alguns experimentos da equipe de Valentín Pérez Mellado demonstraram que eles sempre mantêm uma temperatura que apenas varia em um grau centígrado, algo que conseguem buscando o sol ou a sombra, mas também com outras fontes de calor. “A rapa mosquera floresce em abril e o eixo floral termogênico pode estar até 14 graus acima da temperatura ambiente”, explica. Por isso, a lagartixa balear se aproxima para regular sua própria temperatura. Desta manera, o réptil descobriu também uma fonte de alimento nos insetos que se aproximam da planta, até o ponto de chegar a ouvir as moscas enquanto estão presas, como demonstram alguns experimentos. “Colocamos moscas em recipientes, de forma que as lagartixas não podiam vê-las nem cheirá-las, somente ouví-las, e se aproximavam sempre dos que continham a mosca”, explica.
Definitivamente, a presença da planta é muito benéfica para o réptil, contudo, de alguma forma, esta relação também ajudou enormemente a dispersão da Drucunculus muscivorus. Em 1999, havia cerca de 3.000 plantas e agora chegam a 35.000 em uma ilha que só tem 32 hectares: “É impressionante, toda a ilha cheira a cadáver em abril”, assinala o herpetólogo. Os cientistas se preguntaram como isso era possível e descobriram que no mês de junho, quando o eixo floral frutifica em forma de cacho, as lagartixas o comem e até 95% de seus excrementos contém a semente da rapa mosquera. Desta forma, a intensidade da dispersão é formidável, um fenômeno de evolução ultrarrápido. “Antes pensávamos que este tipo de coisas ocorria ao longo de muitas gerações e de milhares de anos e agora se sabe que podem acontecer rapidamente”. A relação entre a planta e a lagartixa causou tanto impacto que apareceu em um dos capítulos da série da BBC Life in Cold Blood do famoso divulgador David Attenborough.
Indivíduos tímidos e indivíduos valentes
Nos últimos anos, os cientistas têm se perguntado o que levou as lagartixas a ter este comportamento em relação a uma planta nova na ilha e, assim, chegaram a realizar mais descobertas únicas sobre os répteis, o que a ciência chama de o contínuo shy-bold, isto é, que nas populações animais há muitos indivíduos shy (tímidos) e alguns poucos bold (valentes). Esta ideia explica, em boa parte, como funciona a evolução. “Os valentes são os primeiros que se lançam atrás de um novo recurso, o que é bom, mas também arriscado, enquanto que os tímidos os imitam e têm mais segurança”, aponta.
Vários experimentos com a lagartixa balear estão corroborando a existência destes dois tipos de indivíduos em um número muito diferente, o que tem um valor adaptativo. Por exemplo, quando os cientistas colocam dois pedaços de fruta, os répteis sempre escolhem aquele que já está sendo comido por outros membros de sua espécie.
Outros experimentos mais elaborados demonstram que os bold são capazes de resolver problemas e, uma vez abordados de forma satisfatória, o resto dos indivíduos os imitam. Um deles era uma rampa complexa para se chegar até a comida. “Basta que uma das lagartixas seja capaz de encontrar o caminho para que centenas de animais compreendam a mecânica por observação visual”, assegura o pesquisador. Além disso, comprovou-se que, ainda que os problemas sejam diferentes, sempre são resolvidos pelos mesmos indivíduos.
“Transmissão cultural”
As implicações desta investigação para entender o comportamento e a evolução são enormes. “A conduta imitativa é transmissão cultural; não seria adaptativa se estivesse no genoma dos animais, porque os alimentos disponíveis são imprevisíveis em uma ilha, por exemplo, uma tormenta pode atrair águas-vivas e estas lagartixas as comem caso haja um indivíduo que se atreva a fazê-lo pela primeira vez”, explica. Na realidade, “a sociedade humana funciona da mesma forma” e a distribuição de shy e bold tem um grande valor adaptativo.
Em colaboração com a Universidade das Islas Baleares, os pesquisadores da Universidade de Salamanca seguem realizando testes para entender estes comportamentos e, sobretudo, o segredo que distingue os tímidos dos valentes. Uma pequena ilha com uma grande densidade populacional é o laboratório ideal para se avançar em uma linha de pesquisa apaixonante que está contribuindo com uma informação única sobre o reino animal.