Cultura Brasil Campinas, S茫o Paulo, Jueves, 05 de agosto de 2010 a las 15:59
Hist贸ria

Ambiguidades do bem-estar na cultura hist贸rica

Entre a mem贸ria e o esquecimento 茅 preciso estabelecer uma medida justa para n茫o provocar um desequil铆brio

Danilo Albergaria/ComCiência/Labjor/DICYT - Financeiramente, a ideia era boa, afinal, ganha-se dinheiro com bobagens muito maiores, bizarras, burlescas: “Vamos abrir um consultório de historiografia clínica”, dizia, na aurora do século XXI, um aspirante a historiador nos corredores de uma universidade. Desfilando seu pendor para o sarcasmo, o malandro dava a receita do sucesso para o novo empreendimento: “Mostremos aos pacientes que seus mal-estares fundam-se não na infância, mas na história do mundo, da industrialização, da disciplinarização do trabalho, da pressão exercida por padrões de beleza que variam no tempo. A tomada de consciência histórica disso tudo será a cura do mal-estar no mundo moderno”.

 

A profissão de clínico historiográfico não foi regulamentada e ainda estão para surgir centros especializados nessa prática de cura. Mas, hipérboles à parte, há de se reconhecer que consumimos história como nunca. Nesta última década, a proliferação de revistas voltadas à popularização do conhecimento histórico dão uma pista acerca do interesse público que ele gera. Queremos saber a história de tudo: da arte, da ciência, da moda, de uma comunidade. Essa enorme difusão permite afirmar que, ao lado de outras manifestações culturais, como as artes e as ciências, a história tem uma importância muito grande em nossa sociedade: de diversas maneiras, as relações que temos com o passado fazem parte do que podemos chamar de “bem-estar cultural”. Sob este aspecto da vida contemporânea, cabe perguntar: se um dos objetivos do conhecimento é colocar o homem em estado de desconfiança até mesmo em relação ao próprio conhecimento que produz, o que dizer da história no mundo contemporâneo? Para quê ela serve, hoje? Se a história é uma elaboração muito específica da memória, que papel tem a memória num momento de virtualização vertiginosa e multiplicação das informações? E o esquecimento, como algo constitutivo do saber histórico, que lugar tem?

 

Essa última questão pode ajudar a desfiarmos o novelo. Como pode o esquecimento fazer parte do saber histórico? É compreensível que isso pareça um contrassenso. O tema mal foi colocado à mesa de discussão entre os pesquisadores e ainda está muito quente. Como esclarece o historiador José Carlos Reis, da Universidade Federal de Minas Gerais, “ a tese do ‘dever de esquecimento' veio à tona na historiografia sobretudo com a obra A memória, a história, o esquecimento, publicada no ano 2000 por Paul Ricoeur, que expressa com extrema lucidez a consciência histórica ocidental do final do século XX”.

 

Então devemos esquecer? Afinal, não somos a todo momento instados a lembrar de senhas, compromissos, prazos, fatos, fórmulas? “Repercutindo o espírito antihistoricista de Nietzsche”, diz Reis, “Ricoeur vê um desequilíbrio na relação entre memória e esquecimento: muita memória e comemorações aqui, muito esquecimento ali. Ele defende uma política de ‘justa memória', que buscaria equilibrar memória e esquecimento”.

 

Como professam os cientistas detentores das boas maneiras nutricionais, o problema está no excesso. “O ‘dever de memória' é não esquecer, mas o excesso de memória pode levar aos ‘abusos de memória': repetições, ressentimentos, manipulação de identidades nacionais, que desencadeiam a guerra”, afirma Reis. Como um abuso de memória desencadeia conflitos? Basta lembrar do fenômeno nazista, que usou e abusou de uma minuciosa seleção da memória e o apelo a um passado germânico mitológico, glorificando a nação alemã.

 

Não é apenas na manipulação de identidades nacionais que o “excesso de memória” encontra terreno fértil. Tendemos a valorizar a memória e tratar o esquecimento como inerentemente negativo por razões que estão no cerne da condição humana – a consciência de que tudo pode ser esquecido tem implicações existenciais. Temos a consciência da morte, do fim. Isso nos aflige mais do que tudo. Muito do que fazemos no mundo é para, de alguma forma, mantermos vivos os ecos da nossa existência. O “excesso de memória” é um sintoma desse nosso desespero para tudo guardar, para que cada detalhe de nossa vida seja registrado e que permaneça como eco no tempo. “O esquecimento é perigoso, dá medo”, diz Reis. “É o não reconhecimento do passado no presente, uma antecipação da finitude, da morte. Diante de uma ameaça tão assustadora, exageramos no dever de memória e cultivamos uma memória monstruosa, ‘memoriosa', doentia, que não esquece nada”, frisa o historiador.

 

Para Reis, o esquecimento permite uma relação mais saudável e realista com o passado. “Entre a memória e o esquecimento, Ricoeur gostaria de estabelecer uma ‘justa medida' que, para ele, é a historiografia, como ‘trabalho de memória', que deveria ser o remédio para este desequilíbrio”, afirma. Historiografia, remédio: o espertalhão-bufão inventor da historiografia clínica não sabia, mas havia chegado, por vias tortas e caricaturais, a um diagnóstico válido sobre a condição humana atual e sua relação com o passado.

 

Memória virtual

Quando interrogamos as relações que o mundo contemporâneo mantém com o passado, é impossível passar ao largo de uma das questões mais prementes de nosso tempo: a emergência da internet e do ciberespaço. Da mesma forma que o mundo virtual vem modificando profundamente nossa maneira de interagir socialmente e de experimentarmos a cultura, ele também criou novos espaços de construção da memória. “As novas tecnologias da informação, a internet e o ciberespaço possibilitaram uma capacidade praticamente ilimitada de armazenamento de registros. Isso engendra uma outra concepção de memória, que passa a ser vista fundamentalmente como registro. A memória de indivíduos e grupos não se resume a isso: é uma construção feita de seleções entre lembranças e esquecimentos”, afirma Raimundo Donato do Prado Ribeiro, professor de história contemporânea da Universidade Metodista de Piracicaba.

 

A natureza aparentemente anárquica da internet esconde um jogo de poder em torno da apropriação do mundo virtual. Visões de mundo competem ferozmente sobre o futuro do ciberespaço: fundações e comunidades de programadores de softwares livres versus grandes corporações que miram o lucro e se alimentam do consumismo, como a Microsoft e a Apple ; defensores do copyleft e de uma nova forma de colaboração criativa versus defensores do velho direito autoral. Ninguém sabe, ao certo, como será a internet de amanhã, nem sob o controle de quem ela estará.

 

Essa indefinição na infância do ciberespaço justifica um alerta de Ribeiro sobre a construção da memória num mundo virtual: “A seleção que marca a memória de indivíduos e comunidades é heterogênea e diversificada. A seleção operada no novo mundo das tecnologias de informação pode tornar-se homogênea, única, sob a justificativa de ser ‘globalizada'”. Como? “Quem controla o armazenamento e a distribuição das informações pode controlar os processos de seleção da memória e do esquecimento”, diz Ribeiro, que chama a atenção para a importância das “memórias subterrâneas” de nosso tempo, personificadas por aqueles que defendem os softwares livres e uma visão comunitária do trabalho na rede. Em jogo, o futuro da diversidade na elaboração da cultura histórica.


História e esquecimento: a quem servem?

A seguirmos Ricoeur, o bem-estar na cultura histórica passaria pelo esquecimento como forma de exorcizar ressentimentos e ódios. Em outras palavras: trata-se do bom e velho perdão. “Memória-historiografia feliz (proposta por Ricoeur) não deve ser uma memória gigantesca e minuciosamente escrita, deve procurar atingir o esquecimento por duas vias: pelo trabalho de luto, quando consegue finalmente falar sobre o mal sem ódio, e pelo perdão, que é um dom, uma graça”, explica Reis. Ribeiro concorda que “o esquecimento é importante para a reconciliação e para o perdão, para seguir a vida adiante, não importa se estamos falando de indivíduos ou de comunidades”.

 

Que tal propor o perdão e o esquecimento a comunidades vítimas de genocídios e limpeza étnica? Testam-se os limites dessa visão da cultura histórica quando ela é proposta àqueles cujo passado recente guardam brutalidades traumáticas e feridas mal-cicatrizadas. A questão da cultura histórica emerge, grave, urgente, enquanto testemunhamos o começo do desaparecimento dos últimos sobreviventes do Holocausto. Ainda que bastante marginais, revisões da história negando as atrocidades nazistas já deram as caras. Nunca a noção de verdade histórica foi tão obliterada por visões céticas. Verdadeiro e falso, real e fictício tiveram suas fronteiras borradas e apagadas. O clima intelectual da atualidade aponta para verdades subjetivas, relativas aos interesses de quem as constrói. Refletem uma era de individualismo e falta de referências exteriores ao sujeito, que o filósofo francês Gilles Lipovetsky chamou de “era do vazio”.

 

“As posições de Ricoeur foram fortemente combatidas”, relata Reis, lembrando a acusação que lhe foi feita: “A sua denúncia do ‘abuso da memória' seria uma perigosa sugestão de esquecimento do imperdoável”. Os críticos da “tese do esquecimento” afirmam que ela “quer livrar o Ocidente do seu passado de horrores, quer permitir ao Ocidente esquecer a sua história e encontrar uma impossível ‘paz de consciência'”, afirma o historiador da UFMG. Para ele, “Ricoeur tornou-se, por um lado, um intérprete da história universal, favorável às vitoriosas forças anglo-saxãs (que derrubaram o socialismo) em 1989 e, por outro lado, um crítico dessas forças como militante pela construção da ‘Comunidade Europeia', da ‘Nova Europa'” que superaria as atrocidades e os ódios do passado.

 

Desde os gregos antigos, a definição de história não fugiu muito daquela que o dicionário da Academia Francesa adotou até meados do século passado: a história seria “o relato de ações, de acontecimentos, de coisas dignas de memória”. Ora, o que é, de fato, digno de memória? Por muito tempo, a História com H maiúsculo foi a narrativa de feitos militares, decisões políticas e grandes homens (atenção para o gênero masculino: aqui, ele não tem sentido universal). No século XIX, os historiadores responderam à institucionalização das ciências absorvendo a crença na objetividade do rigor metodológico: diziam fazer uma história neutra e imparcial, permitindo aos documentos, vestígios do passado, “falarem por si”. Mas, por trás do pano científico, da verdade neutra e da realidade dos fatos, a história servia à consolidação da sociedade burguesa e do nacionalismo.

 

As inovações radicais que a historiografia conheceu no século XX apontaram para uma história totalizante: saem do foco os grandes líderes e os Estados-nação, entram o cotidiano das pessoas comuns, a economia, a religião, o imaginário. Ganha força, também, como paradigma historiográfico, a visão marxista da história como o grande palco onde se desenrola o drama da luta de classes. Na segunda metade do século passado, no entanto, emerge um resgate do posicionamento cético sobre o discurso histórico, radicalizando-o. É o germe do desaparecimento das utopias, situação que se acentua após a queda da Cortina de Ferro e a vitória inescapável do capitalismo de livre-mercado.

 

“Penso que vivemos uma situação historiográfica paradoxal: por um lado, há muitas publicações e reedições em historiografia; por outro, estamos em uma ‘época presentista', de pouco prestígio da pesquisa histórica, pois a relação do presente com o passado é precária, imaginária, evocativa, literária, não verdadeira. A linguagem historiográfica foi quase reduzida a entretenimento”, lamenta Reis. O interesse pela história parece ter aumentado na proporção inversa de sua capacidade de conhecer a realidade, incomodar, modificar a sociedade. Nunca a cultura histórica foi tão produzida e consumida quanto na “era do vazio”. E nunca os historiadores estiveram tão perdidos: “Os intelectuais foram silenciados, esvaziados. Se antes o Estado oprimia a vida cultural, agora é o mercado. Ainda há ‘intelectuais'? Nietzsche e Marx desafiaram o Estado prussiano, Galileu e Lutero desafiaram a opressão da Igreja, perderam emprego, prestígio, arriscaram a vida ‘para dizerem alguma coisa'. Ninguém mais tem ‘algo a dizer'. Nem eu! Nem sei por que e para que escrevo tanto! A vida intelectual foi escravizada, assalariada, oprimida, vendida! Ela não oferece mais soluções, alternativas, utopias”, alerta Reis, constatando o mal-estar contemporâneo na cultura histórica. Será o fim da história?