Ciencia Brasil Campinas, Brasil, Martes, 11 de septiembre de 2012 a las 17:20
Tradução

Traduzir conceitos científicos impõe impasses por vezes intransponíveis

A necessidade de tradução é evidente e imprescindível na fronteira entre idiomas e igualmente necessária e complexa dentro de um mesmo idioma

Cristiane Kämpf/Labjor/DICYT É mais difícil traduzir um pensamento para um mesmo idioma ou encontrar um substituto exato para traduzir um termo de uma língua para outra? Tanto a tradução intra como a interlíngua são tarefas igualmente árduas e, muitas vezes, diriam alguns linguistas, até mesmo impossíveis de serem completadas com sucesso absoluto. "Traduttore, traditore", diz o famoso jogo de palavras em italiano, que em português significa "Tradutor, traidor" e exprime a ideia de que todo tradutor teria que, necessariamente, trair o texto original para conseguir reescrevê-lo na língua desejada.


Ainda assim, a necessidade de tradução é evidente e imprescindível na fronteira entre idiomas e igualmente necessária e complexa dentro de um mesmo idioma. É o que explica José Moura Gonçalves Filho, psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP): “por exemplo, numa sala de aula em que todos falem português, o professor precisa, muitas vezes, falar e traduzir o que ele diz de maneira que aquilo alcance o tipo de sensibilidade ou prontidão intelectual que é própria de quem está numa condição de novato ou calouro diante do assunto. Acontece da mesma forma na comunicação entre pais e filhos, amigos ou amantes. E, mais ainda, com certeza, quando os parceiros estão em lados idiomáticos diferentes”, diz.

 

Segundo ele, a tarefa de tradução é comunicar sentidos, igualmente importante tanto para o emissor quanto para o receptor da mensagem. Isto porque a tradução tem como objetivo deixar mais inteligível algum sentido para o outro e para a própria pessoa que se comunica. “Na sala de aula vivo muito isso. Sinto que quando sou capaz de traduzir, de maneira proveitosa, o que estou ensinando, não são só os alunos que alcançam aprendizagem. Sempre sinto que eu mesmo voltei a aprender o que estou ensinando. Então acredito que a tradução é urgente em toda comunicação”, afirma o docente.


Tal urgência pode ser verificada, por exemplo, na relação entre profissionais do jornalismo científico e pesquisadores. Mariluce Moura, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Científico e editora da revista Pesquisa Fapesp afirma ser, muitas vezes, necessário fazer com que os cientistas entendam que a linguagem científica é perfeita e adequada para a comunicação interpares, mas não comunica nada em outras instâncias. “É preciso convencê-los de que só podemos fazer bem nosso trabalho de divulgadores e jornalistas traindo sua linguagem,” afirma a jornalista.

 

Para ela, não há dúvida que existem áreas mais difíceis do que outras para serem narradas em linguagem jornalística, ainda que isso possa estar, em grande parte, relacionado às preferências e ao próprio perfil do jornalista. “Todo o conhecimento com altíssimo grau de abstração parece-me muito mais difícil e, às vezes, francamente, impossível de ser narrado. Em particular, acho quase impossível relatar jornalisticamente avanços ou revisões da matemática, uma linguagem que resiste duramente às abordagens da linguagem jornalística, tão diversa”, diz.

 

Traduzindo conceitos científicos

 

Como exemplo da dificuldade de tradução de conceitos centrais da psicanálise, o professor do USP lembra as palavras em alemão usadas pelo psicanalista Sigmund Freud (1856-1939) para descrever o funcionamento do inconsciente – ich, es e Über-ich. Elas são comumente traduzidas em português para ego, id e superego, mas há controvérsias. Na tradução das obras completas de Freud, publicada pela Companhia das Letras, o tradutor, Paulo César de Souza, volta a usar a palavra “eu” (ao invés da popular “ego”) como correspondente de “ich”.

 

Gonçalves Filho explica que Freud usou o termo “ich” para apoiar um conceito que nasceu de muita reflexão sobre a prática e a linguagem e que foi retirado da fala comum, apesar de ter assumido, desde cedo, a figura de um conceito, e não simplesmente da palavra “eu” empregada com um sentido trivial. “Para chamar a atenção sobre este caráter propriamente conceitual, os tradutores, muitas vezes, reoptaram por um termo raro, do latim, como tentativa de acentuar que o uso do termo feito pelo Freud não é óbvio e sim conceitual”, explica. Ainda assim, ele avalia que, quando Freud empregou um termo coloquial em alemão, pretendia justamente suscitar uma conversa, ainda que difícil, com o homem comum. “Ele queria que o seu leitor soubesse que o que ele diz corresponde àquilo que todos chamamos de ‘eu’. Acontece que, uma vez feita a tradução, a leitura em português do Freud esbarra em termos que são do latim e gera um tipo de experiência que não é propriamente aquela, me parece, que o leitor alemão pode ter ao ler o mesmo texto do autor – que é de sentir esta profunda proximidade entre o Freud e o homem comum e, ao mesmo tempo, uma distância. A gente fica sem sentir esse jogo e, às vezes, me parece que isso faz falta”, pondera o psicanalista.

 

A tradução das palavras labour, work, e action na obra A condição humana, de Hannah Arendt, é outro exemplo ilustrativo da complexidade e variedade de sentidos que uma tradução cuidadosa deve levar em consideração – tais termos diferem etimologicamente, ou seja, em sua origem e na maneira como foram se formando ao longo da história. Na primeira vez que a obra foi traduzida para o português foram escolhidos os termos “labor”, “trabalho” e “ação”. Mais tarde, outros tradutores se posicionaram diferentemente e indicaram “trabalho” para labour; “obra” ou “fabricação” para work; e “ação” para action. Gonçalves Filho esclarece que o termo work, usado pela filósofa política alemã, é um tipo de atividade que sempre deixa como resultado um objeto duradouro – algo utilitário ou uma obra de arte. Mas diz que, em português, lhe parece que o termo “trabalho” é geralmente praticado ou percebido nos termos de uma atividade que deixa obra, como o termo work de Hannah Arendt. “Nós falamos ‘entreguei meu trabalho’, ‘o trabalho de Guimarães Rosa’ etc...”, diz. E acrescenta: “veja só a dificuldade da tarefa do tradutor”.

 

Questões igualmente complicadas surgem quando um pesquisador brasileiro precisa escrever a versão de seu artigo em inglês. Carmen Dayrell, professora de linguística da USP e responsável por cursos de redação científica no Espaço da Escrita, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), dá um exemplo ilustrativo: nos artigos científicos a língua inglesa dá prioridade ao uso da voz ativa, mesmo com o uso do pronome de primeira pessoa do singular ou do plural – I ou we, muito comum nas áreas de ciências humanas. O português, entretanto, prioriza a voz passiva, e ela diz ser possível constatar claramente uma resistência dos brasileiros em usar o pronome de primeira pessoa – “tendemos a colocar tudo na passiva e, no inglês, seria mais efetivo, para o sucesso da comunicação, se posicionar diante de um fato ou de seus achados e resultados de pesquisa, na voz ativa”. Na voz ativa o autor aparece e se posiciona através do uso do I. Já na voz passiva, forma preferida pela comunidade científica brasileira, o sujeito some, porque o importante é o que foi feito, o resultado. Mas Carmen adverte que “isso pode ser até visto pelos nativos de língua inglesa como uma forma de insegurança do pesquisador: por que ele não se posiciona usando o I, será que não tem muita segurança do que está dizendo?”. Ela acrescenta que é importante que o pesquisador esteja atento às preferências da comunidade discursiva falante da língua na qual ele quer publicar.

 

Traduzindo artigos científicos

 

A revista brasileira Clinics, publicação da área médica, só aceita artigos já apresentados em inglês e dois terços dos trabalhos publicados são brasileiros – a China está em segundo lugar e a Turquia em terceiro. A revista manda todos os textos selecionados para um serviço de revisão terceirizado – a empresa americana American Journal Experts, que tem o Brasil como o seu segundo maior cliente, “por incrível que pareça”, como diz Maurício da Rocha e Silva.

 

O editor da publicação e professor da Faculdade de Medicina da USP revela que o preço pago pelo serviço é o item individual mais caro nas contas da revista: são aproximadamente 250 dólares por artigo. “Publicamos uma média de 200 a 300 artigos por ano, então é só fazer a conta de quanto gastamos – é caro, mas acreditamos que este dinheiro é muito bem empregado, pois, se o artigo estiver mal escrito, ninguém lê”, afirma Rocha e Silva, que também ministra cursos de redação científica. No curso ele usa exemplos práticos: mostra, por exemplo, como um título ruim pode ser melhorado. “Títulos curtos e que descrevem o resultado, ao invés de métodos, são mais lidos”, diz, citando os resultados de uma pesquisa publicada na própria Clinics.

 

Como Rocha e Silva, Gilson Volpato, docente do Instituto de Biociências de Botucatu da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e criador do “Método lógico para redação científica”, identifica a necessidade de trabalhar com os alunos a coerência interna do texto e o encadeamento lógico entre as partes que compõe a escrita científica (objetivo, método, resultado, discussão e conclusão). Entretanto, ele acredita que a pressão que a área científica exerce sobre a qualidade das publicações se mostra um fator importante. “As áreas onde temos que publicar em revistas de alto nível forçam o cientista a aprender a construir um discurso mais lógico e sólido, expressando-o de forma clara, concisa e objetiva. Contudo, naquelas áreas que aceitam publicações em revistas regionais, os discursos aparecem com mais equívocos, muitos deles refletindo nossos vícios culturais de construção de pensamento e discurso”, afirma Volpato.

 

Ao que parece, a tradução de conceitos científicos é chave não apenas para a formação científica, como também para a internacionalização das pesquisas. Portanto, investir na preparação de estudantes para o aprendizado de outras línguas e, sobretudo, para a capacidade de fazer leituras críticas se mostra estratégica dentro das políticas de ciência e tecnologia.