Capitalismo não resolve suas crises, mas as contorna, afirma David Harvey
Maria Teresa Manfredo/ComCiência/Labjor/DICYT - Crises fazem parte da história do capitalismo. Esgota-se o minério, a mina fecha e uma cidade fantasma é deixada para trás. A fábrica local vai à falência por alguma razão e quase todos ficam desempregados. Tais crises localizadas podem desencadear uma espiral fora de controle e criar crises globais de ordem geográfica e econômica. É o que aconteceu quando uma série de crises imobiliárias localizadas em 2006, especialmente na Flórida e no sudoeste dos EUA, tornou-se global de 2007 a 2009. Mas, por que o capitalismo gera crises periodicamente? Para responder a isso o geógrafo David Harvey busca entender o processo de circulação de capital no mundo, tentando estabelecer o que chama de trajetória geográfica das crises, no livro O enigma do capital e as crises do capitalismo, que foi lançado no Brasil no final de fevereiro.
Segundo Harvey, que é professor na City University of New York (EUA), as crises financeiras geralmente levam a reconfigurações, novos campos de investimento e novas formas de concentração de poder de classe. Servem para contornar as irracionalidades do sistema capitalista. Historicamente não se tem resolvido, de fato, questões inerentes ao funcionamento desse modo de produção; o que se faz, é apenas abafar os problemas, contradições e desigualdades que são partes constituintes do capitalismo.
Harvey analisa a crise financeira mais recente, que começou localizada no mercado imobiliário nos Estados Unidos em 2007 e rapidamente se espalhou ao redor do mundo por uma rede financeira e comercial. Ela seria o auge de um padrão de crises que se tornaram mais frequentes e mais profundas ao longo dos anos. A base da grande maioria delas foram questões de propriedade ou desenvolvimento urbano. Não haveria, portanto, nada de original no colapso atual, além do tamanho e alcance. Também não haveria nada de anormal sobre seu enraizamento no desenvolvimento urbano e no mercado imobiliário.
Os capitalistas e seus agentes têm um papel ativo e fundamental na alteração das configurações da circulação do capital. Harvey não desconsidera isso, mas destaca que os processos de acumulação do capital não existem fora dos contextos geográficos e essas configurações são bastante diversificadas. Novos espaços e relações espaciais estão sendo produzidos constantemente. Fazem-se redes de transporte e comunicações totalmente novas, cidades que se espalham e uma paisagem agrária muito produtiva – exemplifica no livro.
Assim, concorrência e as crises seriam fundamentais para a trajetória do capitalismo. Por isso, o capitalismo floresce melhor em um mundo geográfico de imensa diversidade de atributos físicos e condições sociais e culturais. Além do mais, os problemas de distância têm um papel cada vez menor na limitação da mobilidade geográfica do capitalismo. Isso não significa, porém, que as diferenças geográficas não importem mais. Ao contrário, investidores de capital altamente móvel prestam atenção até mesmo nas pequenas diferenças dos custos locais porque geram lucros mais elevados.
Urbanização como peça chave do capitalismo
Uma das premissas principais do livro é a defesa da categoria espaço como algo fundamental no funcionamento e compreensão da sociedade. Harvey defende tal posição pois, em seu entendimento, muitas vezes as ciências sociais dão as costas para o problema da geografia. “De modo geral (e há sempre, claro, exceções maravilhosas), os antropólogos preferem ver a confusão do global como algo intratável para justificar um foco exclusivo nas etnografias locais; os sociólogos se concentram em algo chamado comunidade ou, até recentemente, limitavam seus estudos às fronteiras do Estado; e os economistas colocam toda a atividade econômica na cabeça de um alfinete. A complexa geografia do todo, do local ao global, é ignorada ou reduzida a uma versão banal do determinismo geográfico físico” – escreve.
Adepto da linha marxista de análise, o autor acredita que um entendimento acurado sobre a crise e a geografia desse capitalismo, dos lucros e do consumo, é a chave para abrir portas para uma luta contra-hegemônica por uma sociedade mais justa e igualitária.
Para o geógrafo britânico, a urbanização é peça chave de reprodução do capitalismo. Assim, cidades são transformadas para atender às demandas do capitalismo e não para o bem-viver de seus habitantes.
A violência é muitas vezes necessária para a nova geografia urbana surgir dos destroços da antiga. O Barão de Haussmann, no século XIX, por exemplo, teria dilacerado velhas favelas parisienses, usando os poderes em benefício supostamente público, em nome da melhoria cívica, da recuperação ambiental e da renovação urbana. Ele teria criado uma forma urbana, em que se acreditava que níveis suficientes de vigilância e controle militar eram possíveis, de modo a garantir que as classes rebeldes fossem facilmente controladas pelo poderio militar.
Harvey também lembra que as infraestruturas urbanas seriam um componente fundamental nos pacotes de estímulo dos governos para levantar suas economias em ruínas. É justamente por meio da realização de novas geografias que os proprietários (em aliança com desenvolvedores, interesses da construção e financiadores) avançam a sua posição de classe, além de trazer soluções momentâneas para o problema, tão comum ao capitalismo, da absorção do excedente de capital.
A produção do espaço em geral e da urbanização em particular tornou-se um grande negócio no capitalismo, pois é um dos principais meios de absorver o excesso de capital. Uma proporção significativa da força de trabalho total global é empregada na construção e manutenção do ambiente construído. No processo de desenvolvimento urbano, são postos em movimento grandes quantidades de capital mobilizados sob a forma de empréstimos a longo prazo. Esses investimentos tornaram-se o epicentro de formação de crises. Por isso, para Harvey, as conexões entre a urbanização, a acumulação do capital e a formação de crises merecem análise cuidadosa.