Cocaína produz alterações genéticas em embriões de peixe-zebra
José Pichel Andrés/DICYT O Instituto de Neurociências de Castela e Leão (Incyl) da Universidade de Salamanca publicou dois artigos na prestigiada revista PLOS ONE sobre o efeito da cocaína nos embriões de peixe-zebra (Danio rerio). Ainda que este modelo de estudo esteja evolutivamente muito distante do ser humano, os resultados moleculares são facilmente aplicáveis a pessoas e indicam que os filhos de mães consumidoras de cocaína poderiam ter uma maior pré-disposição ao vício ao provar esta substância, bem como certa insensibilidade à ação de alguns analgésicos opióides.
O laboratório de Raquel Rodríguez, diretora do Incyl, dedica-se há anos ao estudo de duas linhas de pesquisa: a dor e o vício. Estes dois campos se unem no estudo dos medicamentos que controlam a dor, como a morfina, já que a longo prazo provocam o vício. Seguindo estas linhas de pesquisa, além da morfina, “pensamos na cocaína como agente capaz de produzir vício”, explica a pesquisadora em declarações a DiCYT.
Por esta via, um dos principais resultados obtidos pelos cientistas do Incyl contribuiu para esclarecer os mecanismos pelos quais a cocaína vicia. “A cocaína diminui o microRNA 133b, o que aumenta a função do fator de transcrição Pitx3 e isto, por sua vez, aumenta a dopamina e a atividade dos receptores dopaminérgicos”, comenta o pesquisador peruano Roger López Bellido, um dos principais responsável pela pesquisa.
A dopamina é um neurotransmissor com muitas funções, mas associa-se sobretudo ao prazer. Se a cocaína aumenta esta substância e os receptores celulares aos que se une, seu consumo produz uma grande satisfação através de uma maior atividade do sistema dopaminérgico no núcleo accumbens, o “centro do prazer do cérebro”. Assim, “se você gosta de chocolate, libera dopamina nesse núcleo ao comê-lo”, afirma o cientista, mas o efeito da cocaína é muito superior. “O cérebro pede mais cocaína e isto deriva em uma maior tolerância, de modo que precisa de cada vez mais quantidade para conseguir os mesmos efeitos e, com o tempo, as pessoas viciam”, indica.
Esta relação entre a cocaína e o aumento da dopamina já era conhecida, mas descobrir agora que está implicado um microRNA, que regula a expressão dos genes, representa a existência de alterações genéticas. “Se uma mãe está gravida e consome cocaína, a quantidade que chegue ao embrião produz uma alteração do sistema dopaminérgico e no futuro pode ser que a criança tenha uma pré-disposição ao consumo da cocaína ou desenvolva o vício com maior facilidade”, explicar Roger López.
Definitivamente, os resultados coletados no artigo da PLOS ONE indicam que a cocaína altera a expressão de alguns genes. “Já na gestação estariam sendo alterados certos genes que desenvolveriam muito mais o sistema dopaminérgico” e, deste modo, diante de uma exposição à cocaína, aumentar-se-ia a necessidade de voltar a consumí-la.
Estes efeitos foram comprovados nos embriões de peixe-zebra a nível molecular. O seguinte passo será comprovar se, efetivamente, estas alterações se traduzem no comportamento destes animais, o que é mais difícil de analisar, ainda que fosse possível desenvolver testes para determiná-lo, como os que existem para outros animais de experimentação como, por exemplo, os ratos.
Alterações nos receptores opióides
Por outro lado, a cocaína afeta os receptores dopaminérgicos, relacionados com o prazer, mas também afeta os receptores opióides, relacionados com a dor. Este aspecto também faz parte da pesquisa e os resultados indicam de novo algumas alterações coletadas em outro recente artigo da mesma revista.
“Já sabíamos que a cocaína alterava a expressão dos receptores opióides, que estão relacionados com a analgesia, e agora, ao expor os embriões de peixe-zebra à cocaína, verificamos que os receptores opióides diminuíam sua expressão”, o que se produz através da modificação de outro microRNA, denominado let7d.
Concretamente, a cocaína aumenta a atividade de enzimas envolvidas na formação do microRNA let7d e este aumento provoca uma diminuição dos receptores opióides, de modo que os analgésicos opióides exercem muito menos efeito. Aplicado ao ser humano, isto representa que “se uma mãe consome cocaína, diminuiria a formação de alguns receptores opióides e, tanto elas quanto seus embriões, precisariam de uma maior quantidade de analgésico para diminuir a dor”.
Por exemplo, a morfina é um potente analgésico utilizado em doenças graves que produzem dor intensa, sobretudo em alguns tipos de câncer. Neste caso, os receptores opióides que permitem sua ação seriam reduzidos e, portanto, seu efeito analgésico seria muito menor devido às alterações genéticas provocadas pela cocaína.
Vantagens do peixe-zebra
Todas estas pesquisas precisam ser corroboradas em humanos, mas geralmente os resultados no peixe-zebra tem sua correspondência em todos os mamíferos, porque apesar de serem organismos muito diferentes, os mecanismos moleculares foram conservados durante a evolução. A vantagem de fazer os experimentos com este animal é que seu desenvolvimento é muito rápido: o cérebro está quase formado em 24 horas e a maioria dos órgãos, em 48h. Em apenas três dias completam um desenvolvimento equivalente aos noves meses de gestação humana.
Referências bibliográficas
Katherine Barreto-Valer, Roger López-Bellido, Fátima Macho Sánchez-Simón, and Raquel E. Rodríguez. Modulation by Cocaine of Dopamine Receptors through miRNA-133b in Zebrafish Embryos. PLoS One, 2012. doi: 10.1371/journal.pone.0052701
Roger López-Bellido, Katherine Barreto-Valer, Fátima Macho Sánchez-Simón, and Raquel E. Rodríguez. Cocaine Modulates the Expression of Opioid Receptors and miR-let-7d in Zebrafish Embryos. PLoS One, 2012. doi: 10.1371/journal.pone.0050885