Ministério Público acende polêmica linguística contra dicionário
Romulo Orlandini/ComCiência/Labjor/DICYT - Em fevereiro, o promotor Cléber Eustáquio Neves, do Ministério Público Federal (MPF) em Uberlândia, Minas Gerais, entrou com uma ação civil pública de racismo contra a Editora Objetiva e o Instituto Antônio Houaiss. O processo pede a retirada de circulação das edições do Dicionário Houaiss por conter expressões “pejorativas e preconceituosas” contra os ciganos e, multa de 200 mil reais por dano moral coletivo.
Após a polêmica linguística, a versão eletrônica do Houaiss incluiu duas notas explicativas em relação ao uso da palavra. Assim, lê-se no verbete: “Uso: as acepções 5 e 6 citadas pela promotoria resultam de antiga tradição europeia, pejorativa e xenófoba por basear-se em ideias errôneas e preconcebidas sobre as características deste povo que no passado levava uma existência nômade”.
A edição impressa do Houaiss citada pela Justiça é a de 2001 e diz que os ciganos seriam trapaceiros, velhacos, agiotas e sovinas. “Ao se ler em um dicionário, por sinal extremamente bem conceituado, que a nomenclatura cigano significa aquele que trapaceia, velhaco, entre outras coisas do gênero, ainda que se deixe expresso que é uma linguagem pejorativa ou, ainda, que se trata de acepções carregadas de preconceito ou xenofobia, fica claro o caráter discriminatório assumido pela publicação”, disse o procurador para o site do MPF.
Luta simbólica
Para Sírio Possenti, professor da Unicamp e líder do grupo Festa (Fórmulas e estereótipos: teoria e análise), a polêmica demonstra como a linguagem é uma luta simbólica.“Episódios como este mostram que as sociedades estão divididas em classes ou grupos que defendem seus interesses e representações. Luta-se por bens materiais e por bem simbólicos. A história, convenhamos, é uma arena, não um jardim...”, salientou.
O processo judicial nasceu em 2009, quando um cigano questionou o MPF por discriminação e preconceito por parte dos dicionários contra a etnia. Após a denúncia, Cléber Eustáquio Neves investigou o caso com diversas editoras e recomendou que as expressões preconceituosas fossem suprimidas. Ainda segundo Neves, somente a editora Objetiva não cumpriu a recomendação.
Para Possenti, o promotor confundiu registro com uso ou emprego da palavra. “É claro que o registro de uma acepção é diferente de sua ausência, mas o comportamento típico do falante/escrevente não é procurar nos dicionários os termos a serem escritos ou falados - ofensivos ou não”, disse. Sírio Possenti explicou ainda que o papel do dicionário é registrar. “Penso que os dicionários devem registrar tudo: termos e sentidos neutros, se houver, e termos e sentidos 'orientados'. Registro não é uso nem emprego”, afirmou.
O professor diz que não é possível saber se, ao banir um termo ou acepção do dicionário, este perderá seu sentido. “Só se saberá como tempo. Não há como prever. O debate sobre a questão pode ser um dos fatores que interferem, mas dificilmente será decisivo”, salientou.
A editora Objetiva informou em nota que ainda não foi notificada da ação e que a edição de 2001 está esgotada e fora de circulação. Além disso, de acordo com a Objetiva, os novos dicionários publicados por ela não incluem as expressões pejorativas citadas. Já o Instituto Houaiss não respondeu ao contato feito pela reportagem da ComCiência.
Ciganos no país
Não existem estatísticas oficiais sobre o total de ciganos vivendo no país atualmente. Em 2009, um estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mapeou que 290 municípios reconhecem possuir um acampamento cigano (de um total de 5.565 cidades pesquisadas) e tem políticas públicas voltadas para a etnia.