Prédio público sem crucifixo estabelece abertura à diversidade
Maria Teresa Manfredo/ ComCiência/Labjor/DICYT - No início de março, o Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), decidiu pela retirada dos crucifixos e demais símbolos religiosos nos prédios da Justiça gaúcha. O Conselho considerou que a sociedade também é legitimamente composta por pessoas de religiões não cristãs, de ateus, de sem religião para os quais o atrelamento do Estado ao cristianismo pode significar uma violência simbólica. Segundo a doutora em antropologia da religião Renata de Castro Menezes, o Estado não estaria extrapolando o seu papel ao aprovar tal lei, pois, se estamos falando de locais públicos, como repartições de atendimento ao cidadão, trata-se de estabelecer um acordo mínimo de abertura à diversidade, dentro de certos princípios de convivência social.
A decisão foi aprovada por unanimidade pelos cinco desembargadores que compõem o Conselho. Considera-se que ausência de envolvimento religioso em assuntos governamentais, bem como ausência de envolvimento do governo nos assuntos religiosos (Estado laico) protege a liberdade religiosa de qualquer cidadão ou entidade, em igualdade de condições, e não permite a influência da religiosidade no que seja público.
A sessão de votação foi acompanhada por diversos movimentos sociais como as ONGs Somos, Nuances, Themis, a Marcha Mundial das Mulheres, Rede Feminista de Saúde, além da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL). Em seu blog, a LBL afirmou que a decisão é um importante passo na separação entre Estado e religião, o que pode vir a facilitar discussões sobre temas como estudo de células tronco, aborto, e direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros.
Há quem argumente que, apesar de um Estado laico, como garantido em nossa Constituição, o Brasil é um país de tradição cristã, e, portanto proibir crucifixos em locais públicos é ir contra esta tradição. Sobre este assunto, Menezes que é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro explica que, muitas vezes, a construção de uma sociedade mais justa e democrática implica a mudança das tradições, pois essa é a dinâmica da vida social. Menezes exemplifica que há série de decisões políticas que tomamos contra as tradições, visando uma sociedade mais democrática e equitativa: é o caso do voto das mulheres e dos analfabetos, a permissão do divórcio, a luta pelos direitos das mulheres, dos indígenas e das minorias sexuais, etc.
“Isso é muito diferente, por exemplo, de proibir as pessoas de portarem símbolos religiosos nesses espaços, o que, a meu ver, seria uma interferência indevida do Estado nas opções pessoais. Afinal, não se trata de tirar o Cristo Redentor do Corcovado, ou os crucifixos das ruas de Ouro Preto, etc. Trata-se de criar um espaço público em que o cidadão não-cristão possa se sentir contemplado”, destaca.
Menezes explica que, ao contrário do que pode pensar o senso comum, o Brasil não é um sugestivo caso de relação independente e harmoniosa entre religião e Estado. “Na verdade, a hegemonia católica implicou séculos de violência simbólica e física contra adeptos de outras religiões. Sabemos que a repressão às religiões afro-brasileiras vem de longa data, e só começa a atenuar na segunda metade do século XX, para voltar a recrudescer a partir dos anos 1990 - com o crescimento de certos ramos evangélicos pouco afeitos ao macro-ecumenismo e ao diálogo inter-religioso”, afirma.
Historicamente, a Igreja Católica teria sempre relacionado a política com seu peso cultural na repressão aos cultos de possessão afro-brasileiros, bem como na repressão ao espiritismo. “Já atualmente, certos ramos do pentecostalismo encontram-se em verdadeira batalha espiritual contra católicos, espíritas e afrobrasileiros, tratando a mediunidade, a possessão e o culto aos santos como ações demoníacas”, elucida a antropóloga.
Por outro lado, teria havido, historicamente, uma relação de complementariedade entre Estado e Igrejas no campo da educação, saúde e assistência social, demonstrando os limites da independência. Menezes alerta que é preciso considerar essas relações a partir de dados históricos e pesquisas empíricas, sob pena de reproduzirmos uma falsa autoimagem de tolerância, numa espécie de representação ideal do brasileiro como um povo essencialmente cordial.